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O carvão ameaça Porto Alegre

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Anahi Fros || Jornalista e ambientalista

Ao longo do tempo, a crescente poluição atmosférica da capital gaúcha, somada à alta umidade do ar, vem gerando progressivos danos à saúde da população. Sintomas como irritação dos olhos, doenças respiratórias como asma, bronquite, enfisema e pneumoconiose (por inalação de poeira), aumentaram de forma significativa, lotando plantões, consultórios e gerando sofrimento principalmente a crianças e idosos.

Quem passeia pela orla do Guaíba percebe uma mudança gradativa no cenário: as cores vivas do entardecer, comumente eternizadas em milhares de imagens nas redes digitais, vêm sendo apagadas por uma névoa cinza que volta e meia insiste em cobrir o lago Guaíba e apagar o horizonte. Moradores tanto do Centro Histórico como Humaitá, Navegantes e Zona Sul sentem ainda mais as mudanças, seja nas roupas do varal que já não saem tão limpas, seja em tosses insistentes e pigarros que antes não eram tão comuns. A água que sai das torneiras da metrópole também caiu em qualidade e cresceu em riscos, com o aumento de índices de metais pesados em suas medições. Os baixos parâmetros de potabilidade, que já não eram bons, despencaram.

Hipótese ou realidade?

A situação descrita acima é hipotética, mas pode se tornar realidade caso as projeções de diversos profissionais, cientistas, entidades ambientais e organizações de classe estejam corretas em relação à possível instalação da Mina Guaíba, a maior lavra de carvão a céu aberto do Brasil.

O projeto é da empresa Copelmi Mineração, maior mineradora privada de carvão no país, e pretende depositar seu maquinário e seus explosivos entre as cidades de Charqueadas e Eldorado do Sul. O local fica a 535 metros do Parque Estadual Delta do Jacuí, sobre duas microbacias hidrográficas – do Arroio Pesqueiro e do Arroio Jacaré – e em uma das mais importantes áreas de conservação do Rio Grande do Sul, também chamada  de “Amazonas do Rio Grande”.

O Rio Jacuí contribui com 84,6% de águas limpas na formação do Lago Guaíba, diferente dos poluídos afluentes Sinos, Caí e Gravataí. Por conta do ecossistema preservado, o parque atua como um imenso filtro natural, contribuindo para manter a potabilidade das águas e os bons níveis de produtividade de pescado.

Em linha reta, a mina ficaria a 16 km da Capital do Estado, praticamente a distância que separa a Usina do Gasômetro e o calçadão do bairro Ipanema, em Porto Alegre. A intenção da Copelmi é retirar 166 milhões de toneladas de carvão bruto em 23 anos de operação, até esgotar a fonte de combustível fóssil existente no local, além de 422 milhões de m3 de areia e outros 200 milhões m³ de cascalho. A área de 4,5 mil hectares equivale a cerca de 120 vezes o Parque da Redenção.

Estudos questionam

Desde 2014, a Copelmi tenta uma licença prévia de operação junto à Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (FEPAM) para escavar carvão, areia e cascalho. Ainda não existe um posicionamento conclusivo ou prazo definido para emissão de parecer final, apesar de já terem sido realizadas duas conturbadas audiências públicas, em Charqueadas (Março) e em Eldorado do Sul (Junho), ambas sem encaminhamentos conclusivos.

No dia 4 de Julho de 2019, dezenas de entidades, movimentos populares e membros do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul (CCM) realizaram um ato em frente à sede da FEPAM, no Centro de Porto Alegre, e protocolaram ofícios pedindo a realização do encontro na Capital. Junto a eles, anexaram pareceres técnicos que contrariam os estudos da mineradora que informam não haver riscos na mineração.

A insistência das organizações sociais se justificativa. O país viveu, recentemente, suas maiores tragédias ambientais por causa da atividade de mineração. No caso da Mina Guaíba, ambientalistas calculam que 4,3 milhões de pessoas serão impactadas na Região Metropolitana de Porto Alegre, com risco de contaminação do entorno por metais pesados e poluição atmosférica oriunda da extração do carvão. Entre alguns dos riscos citados estão a acidificação da água e a geração de metais pesados tóxicos, que podem contaminar o ar a partir da particulação gerada pelas explosões e atingir de forma irreversível o lençol freático. Acrescenta-se aos danos o lançamento dos gases de efeito estufa em grandes quantidades no ambiente, aumentando o aquecimento global.

Na contramão

A instalação de um polo carboquímico no Estado entra na contramão do que preveem acordos internacionais. O carvão mineral é considerado o mais poluente dos combustíveis fósseis, pode deixar de ser utilizado por 20 países até 2030, conforme prevê acordos firmados durante Conferência do Clima da ONU (COP 23), ocorrida em Dezembro de 2017. Na edição de 2018, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, pediu que governos e investidores apostem “na economia verde, não no cinza da economia carbonizada”.

A empresa Copelmi promete a criação de 1.154 empregos diretos e 3.361 indiretos, assim como o aumento da arrecadação em Charqueadas e Eldorado do Sul. Os números são contestados com base no número de famílias que serão retiradas do local. Críticos à mina dizem que serão 7,5 mil empregos a menos, entre diretos e indiretos. Para se ter uma ideia, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Butiá, cidade onde a Copelmi tem uma unidade mineradora desde 1972, é de 0,689, deixando o município como o 357º no ranking do RS. Ou seja, não é um município desenvolvido.

Impactos dramáticos

“O projeto prevê o rebaixamento de lenço freático, desvio de dois cursos d’água e construção de um dique com 20 metros de altura. Falam que não haverá barragem, mas então, qual seria o sentido desta obra? Há ainda o impacto da pirita, rejeito que, em contato com oxigênio e água, a torna ácida, matando qualquer forma de vida. O local é ambientalmente muito frágil, um remanescente da Mata Atlântica, vizinho da Unidade de Conservação, às margens do rio. Se houver um acidente no qual vaze um volume muito grande de água resultante do processamento ou da Estação de Tratamento de Efluentes para o Jacuí e posteriormente para o Guaíba, qual o impacto disso?”, enumera John Fernando de Farias Würdig, mestre em Planejamento Urbano Empresarial, professor universitário e Presidente da Associação Gaúcha de Engenheiros Ambientais.

Cerca de 40 especialistas integram o Comitê de Combate à Megamineração no RS, compondo o Grupo de Trabalho voltado à pesquisa dos impactos da Mina Guaíba. Um dos pareceres protocolados na FEPAM relativo à Mina Guaíba é assinado pela Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA), de Guaíba. A entidade aponta que, no Estudo de Dispersão Atmosférica apresentado pela mineradora se baseia em padrões defasados em até 15 anos.

“Os dados utilizados pela Copelmi são de 30% a 50% menos restritivos do que os valores de referência da Organização Mundial da Saúde. Ainda assim, as próprias modelagens da empresa reconhecem que as partículas de carvão em suspensão, podem chegar a Porto Alegre”, comenta o coordenador de Patrimônio Natural da AMA, o engenheiro ambiental Eduardo Raguse Quadros. Ele adverte que não existem estudos dos efeitos à saúde humana nos documentos apresentados pela mineradora.

Atraso ambiental

O mestre em Botânica, doutor em Ecologia e professor do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da UFRGS, Paulo Brack é incisivo: “Esse projeto é um atraso tanto em termos ambientais como econômicos. Além dos riscos por conta do alto potencial de poluição da queima do carvão, é caro manter este tipo de mina. O Brasil possui um dos maiores potenciais para gerar energia renovável, limpa e mais barata, como solar e eólica”.

Um relatório da Energy Innovation revelou no início do ano que cerca de três quartos da produção de carvão dos Estados Unidos custam mais caro do que as energias solar e eólica no fornecimento de eletricidade para as famílias americanas. As afirmações do Doutor em Ecologia são corroboradas por outros especialistas na área. “Colocar uma mineração dentro da Capital, já que ela ficaria mais perto do Centro do que a maioria dos bairros significa assinar uma marcha ré acelerada contra todo pioneirismo de qualidade de vida dos gaúchos”, resume o biólogo Francisco Milanez, Presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), com 48 anos e muitas lutas no currículo. Milanez é especialista em Análise de Impactos Ambientais pela Universidade Federal do Amazonas e mestre em Educação pelo programa Ciências: Química da Vida e Saúde, da UFRGS, onde atualmente é doutorando.

O Presidente da AGAPAN lembra que, em Dezembro de 2018, a Alemanha fechou sua última mina de carvão em funcionamento, com direito a cerimônia oficial e presença de grandes autoridades europeias. Mesmo fechada, ressalta Milanez, a mina vai consumir 220 milhões de euros por ano (mais de R$ 700 milhões) para preservar a água subterrânea da poluição gerada. “Não existe garantia de nada no projeto”, fala um dos advogados do Ingá, AGAPAN e União Pela Vida (UPV), Nilton Tavares da Silva Filho, que integra a equipe que vem tratando judicialmente da questão.

Arroz orgânico

A Mina Guaíba quer ocupar o local onde agricultores detêm hoje o recorde latino-americano de cultivo de arroz agroecológico. A agricultora Adeles Bordin mora no assentamento Apolônio de Carvalho, a segunda maior unidade produtora de arroz orgânico do Estado depois de Viamão, com 72 famílias de agricultores, 700 hectares de cultivo de arroz, além da produção de hortaliças e um projeto de piscicultura em implantação. Os alimentos abastecem mais de 40 feiras orgânicas na Região Metropolitana de Porto Alegre. A Copelmi pretende remover ela e todos os moradores do local.

Além do assentamento, a lavra de carvão vai afetar cerca de 80 famílias do Loteamento Guaíba City, em Charqueadas, 40 comunidades indígenas guaranis, além de mais de 2 mil pescadores das ilhas que compõem o Delta do Jacuí e outros 4,5mil trabalhadores do setor hoteleiro.

Histórico de lutas

Foi no Rio Grande do Sul que um grupo de ativistas, sob a liderança de José Lutzenberger, lançou as bases do movimento ambientalista brasileiro, e que viria a se tornar a AGAPAN. Seu precursor foi Henrique Luís Roessler, que, em 1955, fundou a União Protetora da Natureza.

O Rio Grande do Sul também é pioneiro no país na regulamentação da utilização de agrotóxicos, tendo, em 1982, estabelecido a proibição do uso de organoclorados e indicando a obrigatoriedade de receituário agronômico nas lavouras. Um clássico dessa história de luta foi o caso da fábrica de celulose Borregaard, instalada às margens do lago Guaíba sem qualquer investimento em equipamentos antipoluição, filtros ou barreiras nos esgotos e chaminés da unidade.

Ao entrar em operação, a cidade de Porto Alegre foi tomada por um terrível cheiro de ovo podre, provocando mal-estar e dores de cabeça, um verdadeiro desastre ambiental que vinha sendo preconizado por estudiosos ainda durante o projeto de instalação. No fim de 1973, a fábrica foi interditada pelo Governo do Estado por conta da pressão de ambientalistas, imprensa e políticos e obrigada a adotar controles ambientais. Após sucessivas trocas de nomes e de comando, a empresa segue sendo alvo de críticas porque até hoje impacta com poluição.

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