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Araquém Alcântara comemora 50 anos de carreira

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Reconhecido mundialmente por sua obra fotográfica, Araquém Alcântara, um dos precursores da fotografia de natureza no Brasil, comemora 50 anos de uma carreira brilhante e consolidada. Um dos mais importantes fotógrafos em atuação da atualidade, Araquém começou a fotografar ainda menino, reproduziu sua primeira foto em Janeiro de 1970, e não parou mais

Para comemorar tão importante momento da vida e obra de Araquém, reproduzimos abaixo um texto publicado na ECO21 na edição 126 da nossa revista em Maio de 2007.

Araquém Alcântara: o memorialista do Brasil

René Capriles | Editor da ECO21

Ao observar uma e outra vez as fotografias de Araquém Alcântara o que elas revelam em sua estrutura e composição é a oportunidade do “instante decisivo”. Por essa razão é impossível deixar de lembrar as palavras do mestre Henri Cartier-Bresson: “a fotografia é o reconhecimento simultâneo, é uma fração de segundo, a relevância de um acontecimento e a organização exata das formas que expressam adequadamente esse acontecimento”. É o que, na filosofia da fotografia, se conhece como o “instante decisivo”. Já o foto-filósofo hispano-mexicano Pedro Meyer, num dos seus analíticos editoriais de Zone Zero acrescenta que o “instante decisivo” é uma metáfora da caçada, a busca da confluência entre forma e conteúdo, algo que o fotógrafo deve descobrir e capturar num instante, o que em outras palavras significa capturar a vida e congelar esse instante num único fotograma. É o que Araquém Alcântara faz desde 1985: esperar pelo instante decisivo e capturar, congelar, no espaço delimitado pela sua lente, o significado do prodígio que é a vida. Mas, ao observar as imagens capturadas por Araquém, não basta a estética do momento documental, existe nelas uma reflexão sobre a integridade do ser escolhido para ser “capturado”; isto é, a fotografia de Araquém, por mais realista que ela seja não é um fato isolado, é a narrativa de toda uma história. Há cumplicidade entre o fotógrafo e a realidade escolhida para fixá-la numa imagem.

Ao acompanhar a rota que Araquém optou para iniciar a sua fabulosa aventura de naturalista, o que se destaca é o momento do quase místico “chamado”. Aconteceu numa noite transfigurada de 1970, em Santos, quando Araquém, ainda adolescente, assistiu a uma sessão de cinema e viu o filme “A Ilha Nua” que Kaneto Shindo dirigiu em 1960. O fotógrafo desse filme em preto e branco, sem palavras e quase sem movimento, foi Kiyoshi Kuroda, um minimalista que jamais imaginou ter o poder de influir na estética que seria, depois, de um dos maiores fotógrafos memorialistas do Brasil. Araquém lembra essa “noite maldita” com estas sintomáticas palavras: “a força e a beleza da imagem pura, a fotografia como síntese do dizer; eu transido no escuro fui tendo uma epifania. Sai dali tonto, abalroado, chamado”. O seu batismo de fogo foi a bordo de uma Yashica. O espaço era a nave de um dos tantos cabarés do porto de Santos. Com 3 rolos P/B, nervoso, como todo debutante ante o desfloramento, metaforicamente acompanhado por Glauber Rocha, “sem nenhuma técnica na cabeça”, quase sem a coragem dos marujos do lugar, com o quarto escuro fantasiando na sua ansiedade, voltando ao amanhecer sem ter disparado um fotograma, no ponto do ônibus, uma moça do cabaré lançou o fatal desafio: “Quer fotografar? Pois então fotografa aqui”. Levantou a saia e mostrou o sexo. E Araquém revela: “Foi minha primeira foto”. Como no quadro de Gustave Courbert, ele retratou a origem do mundo.

Capa Revista ECO21 Edição 126 – Foto: João Marcos Rosa

O cinema foi a primeira porta que abriu e olhou o que havia do outro lado. Ficou impressionado pela sinuosidade do preto e branco da linguagem fotográfica de Asakazu Nakai (Kurosawa), Gunnar Fischer (Bergman), Otello Martelli (Fellini), Henri Decaë (Truffaut), Gregg Toland (Welles). Depois chegaram os livros dos fotógrafos Cartier-Bresson, Werner Bischoff, Ansel Adams, Ernest Haas, e outros. Assim, pelo foto-jornalismo de Cartier-Bresson, o naturalismo de Werner Bischoff, o ambientalismo de Ansel Adams e pelo documentalismo de Ernest Haas, Araquém Alcântara fez a sua primeira incursão fotografando, em Santos, uma memorável seqüência de seis imagens do contraponto de uma menina e um urubu que mereceu ser publicada pela revista Fotoptica de Thomas Farkas. “Uma tarde, ainda em 1973, voltava da cobertura de uma regata quando vi um urubu na calçada, na frente de uma peixaria. Da peixaria saiu uma menina de uns três ou quatro anos e se aproxima, encantada, com o urubu. Ajustei firme minha modesta Pentax Spotmatic. Pressenti. E isso me certificaria depois, a vida inteira, de que foto é pressentimento, a premonição de que alguma coisa de simples e grande vai acontecer. Aconteceu. A menina se inclinou para afagar o urubu. O urubu já estava abaixando docilmente a cabeça quando dois homens saíram nervosos da peixaria. Um agarrou a criança, outro enxotou o urubu. Registrei a cena toda; em seis fotos contei a história. Num segundo descobri que ser fotógrafo era registrar a história instantânea deste mundo. Que é preciso estar ali quando a vida, de repente, levanta a saia… e se mostra”. Vinte anos depois, o inspirado fotógrafo sul-africano Kevin Carter, no Sudão registrou o drama da fome com uma imagem similar que acabou recebendo o Prêmio Pulitzer.

Em 1979 Araquém descobre um país: o Brasil. Tal como anteriormente outros naturalistas, Debret, Rugendas, Von Martius, Langsdorf, nas suas missões pictóricas documentaram um Brasil ignoto, Araquém partia para documentar o Brasil de hoje, um Brasil tão pouco conhecido quanto dilapidado. Foi até o coração da Mata Atlântica. “A pé, por matas virgens, subindo e descendo morros, dormindo sob grandes árvores. Foi outra revelação, como aquela da noite em que bati a cara contra as imagens de Kaneto Shindo. Só que ali a ilha não era nua. Deus fez todas as florestas e a Mata Atlântica. Eram aquelas grandes massas de todos os verdes, pontilhadas de cores, córregos alegres, ikebanas que se formavam, uma atrás da outra, naturalmente. A revelação, contra todo o horror, da harmonia possível. A descoberta da cor, no seu hábitat. Uma vez, em plena Juréia, me senti como que ungido para essa missão. Uma noite, fui contemplado com a visão de mãe-de-fogo, também chamado tucano-de-ouro, uma bola de luz com rabo de cometa que se desprende dos ermos e se sustenta por uns segundos no céu. Tive tempo de chamar o caiçara Vandir e, juntos, vimos o mãe-de-fogo desaparecer atrás do pico do Pogoçá”.

Ir da Mata Atlântica para o Amazonas foi uma questão de tempo. Em 1980, num igarapé próximo a Manaus saiu num barco com a esperança de encontrar uma onça. Não esperou muito e ali estava, majestosa, pulando na água. Foi um encontro olho no olho. Nunca foi mais verdadeira a expressão “instante decisivo”. Araquém ainda trabalhava com negativo. “Revelei a foto, ampliei, e a vendi para os gringos dos pneus e, com o dinheiro, comprei meu primeiro tripé, minha primeira Nikon. Voltei profissional”, lembra sempre com emoção. A natureza tinha sido mais uma vez pródiga para com ele. A seguir, a realidade manifestou-se na sua total crueza: “voltei mais equipado para uma fotografia social, de combate e denúncia, em preto-e-branco”, as imagens em cor ficaram reservadas para a fotografia ecológica. Após umas rápidas passagens pelas redações dos jornais Estado de São Paulo, A Tarde e a revista Isto É, entrou na luta contra a construção de usinas nucleares na região da Juréia. Fez uma foto antológica retratando seu pai, Manuel Alcântara, o Velho Queco, com uma foto dos mortos de Hiroxima. “A foto correu o Brasil e o mundo como um grito, um exorcismo. O Velho Queco, profético, com uma tragédia no peito. A imprensa publicou a matéria contra as usinas e os caiçaras passaram a dizer que era coisa do diabo. Hoje, a praia da Grajaúna faz parte da reserva ecológica da Juréia”.

A sua opção de ser um memorialista, de ser um naturalista contemporâneo, começou a ficar documentada em livros. Seu primeiro trabalho, sobre as árvores de Minas Gerais, resultou da colaboração com o paisagista Roberto Burle-Marx. Não demorou muito para se multiplicarem seus ensaios visuais, assim registrou a Mata Atlântica e o complexo lagunar conhecido como Mar de Dentro. “Ambos são uma pura celebração da beleza da nossa fauna e flora”. Foi o início de uma longa caminhada que o levou a percorrer todo o Brasil registrando 36 Parques Nacionais. É uma obra hercúlea para um só fotógrafo, a longa viagem durou dez anos. “Percorri o meu longo Brasil, aonde bichos, gentes, paisagens vão despontando, despertando para um imenso mural de arrepiar. Vi as araras-azuis do Pantanal, as delicadas flores dos Campos de Altitude, o rugido das onças e a abundância de peixes no Araguaia, os lobos-guarás da Serra da Canastra onde, num jardim japonês, nasce o São Francisco, as lagoas perdidas e os pescadores nômades dos Lençóis Maranhenses. Vi a bíblica concentração de maçaricos e capororocas na Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul, os mal-humorados caititus e sobranceiros gaviões do Parque das Emas, as araras-canindé do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, onde brotam o Urucuia e o Carinhanha, de Guimarães Rosa. E, também, as cidades de calcário e arenito da Serra da Capivara, no Piauí, legendadas de inscrições rupestres, os portentosos cânions dos Aparados da Serra, as perturbadoras figuras de pedra no Pico do Roraima”.

Tanto os animais quanto as paisagens exigiram de Araquém uma contemplação especial. Fotografar uma praia não era chegar e fazer a foto, era esperar pelo “instante decisivo”. Octavio Paz trata deste assunto com verdadeira sapiência poética: “É o instante, esse pássaro que está em todas as partes e em nenhuma. Queremos asir-lo vivo, mas abre as asas e se desvanece transformado num punhado de sílabas”. No caso de Araquém, podemos afirmar que se desvanece transformado numa torrente de imagens. A fotografia é a metáfora perfeita para explicar esse mistério. Cartier-Bresson avança mais ainda neste conceito: “Há fotógrafos que descobrem a imagem e a capturam”. Ele está ciente de que a realidade é muito mais rica do que qualquer imaginação, mesmo as das imagens não-realistas ou até surrealistas.

Uma fotografia é o resultado da conjunção da mente, do olho e da câmera. Esse tripé explica o mundo e faz da arte fotográfica um deleite ou uma denúncia. O que é fixado num instante, ficará definitivamente registrado no tempo e nada poderá alterar essa realidade. Pode-se questionar a realidade pelo seu lado social, mas existe um mundo real que independe da percepção, ele está ali disponível para que a mente, o olho e a câmera o visualize; é um espaço absolutamente livre. E Araquém Alcântara é um mestre em capturar esses instantes do mundo real. Seja focando uma onça, seja testemunhando a miséria das crianças carvoeiras, seja do alto de um avião documentando a destruição da floresta pelas queimadas.

Sobre isso ele esclarece: “Aquele que mergulha na viagem do ver tem que estar sempre com as portas da percepção abertas. Sabe que diante do eterno, precisa esquecer-se de si próprio. A criação é o que importa, é o gesto fundamental, o caminho de conhecimento, uma poderosa arma de encontrar o mundo. O verdadeiro fotógrafo da natureza, como de resto qualquer fotógrafo, deve escolher o caminho com o coração e nele viajar incansavelmente, contemplando como pessoa inteira tudo o que é vivo. Absolutamente íntegro, sem propósito a alcançar, sem submissão a regras e fórmulas, sem necessidade de parecer brilhante ou original. Só assim, autêntico e livre, pode captar o espírito criador em movimento e criar coisas belas”.

O ato criativo de Araquém explica de muitas formas o Brasil. Independente do conteúdo místico, como ele define o seu encontro com a beleza. “O fotógrafo sente, neste momento fugaz, algo parecido com o satori hindu, um momento de revelação, um indefinido e maravilhoso prazer. O observador se confunde com a coisa observada, o vazio se instaura. O que estava contido volta a pulsar, o que antes era pressentimento agora é realização”.

Evidentemente que o criador coloca na sua visão da realidade algo que já é inerente a ele, que está dentro dele, as suas próprias idéias e conceitos. As imagens não são somente ícones, elas também são caminhos para entender um país, a realidade imaterial. A arte do fotógrafo está em descobrir as pegadas que deixou a história e mostrar ao mundo esse fenômeno que é a vida. Nessa trajetória memorialística de Araquém o fator intuitivo é de fundamental importância; é graças a ele que a denúncia visual da destruição amazônica se revela como verdadeiro documento. “Precisamos lembrar sempre que a Amazônia pode chegar ao ponto trágico da Mata Atlântica, que foi praticamente dizimada e antigamente recobria quase toda a faixa do litoral. Com o aquecimento global em pauta, sei de crianças e adolescentes aterrorizados com o que julgam ser o fim do mundo. Precisamos urgentemente dizer-lhes – porque somente deles pode advir uma nova ética e consciência planetária – que a Terra está realmente em agonia, que atingiu seu estado crítico por conta de nosso comportamento destrutivo e egoísta. Extraímos sem repor, envenenamos o ar, poluímos as águas, destruímos em segundos séculos de maravilhosa construção”. 

Com 36 anos (atualmente 50 anos) de registros fotográficos, quase 30 livros (atualmente 55), a alguns deles com tiragens que superam os 80 mil exemplares, Araquém Alcântara é um dos nomes mais importantes da cultura nacional. Assim como o cineasta Nelson Pereira dos Santos dignificou a Academia Brasileira de Letras, Araquém poderia levar para a casa de Machado de Assis, o nome de alguém que fez do instante decisivo, da reflexão visual, um verdadeiro registro da história do Brasil. Nas escolas primárias e secundárias, em vez dos livros chatos e antipedagógicos que circulam nas aulas, os docentes deveriam exigir que os livros de Araquém sejam profusamente estudados porque assim os alunos poderiam conhecer muito melhor o país no qual deverão viver e trabalhar. Nada mais pedagógico do que “Terra Brasil”, “A Grande Floresta” ou “Mar de Dentro” para saber que país é o Brasil.

E apelando à sabedoria dos anciões, ele resgata esta frase do velho Samuca, habitante anônimo do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Minas Gerais, homem que nunca frequentou escola: “nós estamos andando na Terra como um bando de cegos. Donde só se tira e num si põe, um dia tudo mais tem que se acabar”.

Biguatinga. Estação Ecológica de Juréia Itatins. Peruíbe Iguape – Foto: Araquém Alcântara
Menina do Rio Negro e seu bicho de estimação. Arredores de Manaus – Foto: Araquém Alcântara
Jovem ribeirinho do rio Negro – Foto: Araquém Alcântara
Tamanduá cego fugindo do fogo – Foto: Araquém Alcântara

site oficial: https://araquemalcantara.com.br/

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