Clara Roman || Jornalista do Instituto Socioambiental – ISA
O desmatamento da Amazônia pode ser a ponta do iceberg de um problema muito maior: a degradação florestal, decorrente do roubo de madeira. Um estudo inédito do Instituto Socioambiental (ISA) e da Comissão Europeia aponta que as taxas de degradação florestal em terras indígenas são quase o dobro do que as de desmatamento. Só que a degradação é muito mais difícil de ser identificada.
A degradação é o empobrecimento gradual da floresta devido ao corte seletivo, o roubo de madeira. Os madeireiros vão retirando da floresta as árvores mais nobres. Com isso, desequilibram todo o ecossistema, impactando os ciclos naturais, escasseando seus recursos e tornando-a mais ressecada e suscetível a queimadas.
“A detecção da degradação é muito mais complexa do que o chamado corte raso da floresta, pois é difícil identificar as áreas afetadas pelo corte seletivo de madeira nas imagens de satélite. Hoje, os sistemas de monitoramento por satélite detectam a supressão total da vegetação, isto é, quando grandes áreas são desmatadas integralmente”, afirma Antonio Oviedo, pesquisador do ISA e um dos autores do estudo. Com uma nova aplicação de processamento das imagens, porém, o estudo conseguiu traçar um panorama da degradação florestal ao longo de quinze anos (2004 a 2018) em oito Terras Indígenas (TI), todas elas com registro da presença de povos indígenas isolados.
O estudo focou em áreas nos estados de Mato Grosso, Pará e Maranhão e nas Terras Indígenas Alto Rio Guamá (PA), Alto Turiaçu (MA), Awá (MA), Caru (MA), Araribóia (MA), Arara do Rio Branco (MT), Kawahiva do Rio Pardo (MT) e Piripkura (MT). Os estados de Mato Grosso e Maranhão são regiões amazônicas pressionadas por altas taxas de desmatamento. Os dois estados, Mato Grosso e Maranhão, estão entre os principais centros de produção de madeira e abrangem municípios dominados por serrarias e pela extração ilegal de madeira, tais como Colniza, Aripuanã e Rondolândia, no Mato Grosso, e Arame, Grajaú, Amarante do Maranhão, Buriticupu e Bom Jardim, no Maranhão.
Os números levantados são alarmantes. Em alguns territórios, a degradação já compromete quase a totalidade dos territórios. É o caso da Terra Indígena Awá, onde 92% da floresta remanescente está degradada. Na TI Alto Rio Guamá (PA), esse número chega a 85%. A TI Araribóia, palco do assassinato de Paulo Paulino Guajajara no dia 1 de novembro, tem 38% da floresta remanescente comprometida, enquanto a TI Arara do Rio Branco, 28%.
Uirá Garcia, antropólogo e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), trabalha com o povo indígena Awá Guajá, no Maranhão, que habita as terras Awá, Caru, Araribóia, Alto Turiaçú e Alto Guamá. Segundo seu relato, árvores nobres como o mogno já desapareceram das terras indígenas Awá e Caru. Hoje, as árvores mais procuradas pelos madeireiros são Tatajuba, Ipê, Maçaranduba, Jatobá, Angelim e Pequi (Pequi da Amazônia). “Essas árvores são fundamentais para todos os ciclos da floresta e dos animais. Muitas delas são habitats preferenciais de dezenas de espécies de aves e mamíferos, o que pode provocar a morte direta desses animais e de toda uma cadeia,” afirma Garcia.
Ao todo, nas oito TIs estudadas, o estudo mapeou 490.318 hectares degradados, um número maior do que o desmatamento identificado nesses territórios. Enquanto a quantidade de floresta degradada pelo corte seletivo corresponde a 24,3% da cobertura florestal remanescente dessas terras indígenas, o desmatamento de corte raso equivale a 13,2%.
“O primeiro impacto é deixar a floresta, como um todo, muito mais vulnerável. A degradação costuma ser o primeiro passo para o desmatamento completo”, explica Pedro Soares, do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (IDESAM). Aos poucos, a degradação acaba com espécies que poderiam promover a própria regeneração da floresta. Também prejudica a manutenção e renovação de nascentes e mananciais de água por meio do abastecimento dos lençóis freáticos e cursos d’água. Cada vez mais ressecada e pobre, a mata fica suscetível a incêndios naturais ou criminosos, e mesmo a pragas que atacam as árvores, tais como os cupins, mariposa mandarová, broca da perobeira, mosca branca, lagartas e cochonilhas, que perdem seus inimigos naturais. A floresta segue desequilibrada em ritmo crescente, até acabar de vez.
“Para os Awá toda a ‘boa vida’, ou iku katy como eles dizem, está na floresta. Não só do ponto de vista alimentar, mas das memórias, dos espíritos, e de toda uma rotina de saberes e conhecimentos (farmacológicos, botânicos etc.) que é diretamente relacionada às florestas e às muitas espécies de plantas e animais que a compõe. Nesse sentido, o desmatamento também desmata as pessoas e suas relações com o mundo”, diz Garcia.
O estudo do ISA também rastreou os ramais madeireiros e estradas clandestinas abertas pelos invasores para escoar a madeira roubada. Os ramais são visíveis por satélite e, geralmente, os pontos de roubo de madeira ficam próximos a ele, entre 180 a 350 metros. Na TI Araribóia, por exemplo, foram identificados 1.248,5 quilômetros de ramais ilegais dentro da área protegida.
Awá sofrem com fome e sede
O estudo se debruçou sobre terras com presença de povo indígenas isolados, onde a integridade da floresta é fundamental também para a sobrevivência destes grupos Os isolados retiram da floresta tudo o que precisam para sobreviver. O desmatamento e a degradação comprometem diretamente seu modo de vida, pois recursos passam a tornar-se escassos, como árvores e plantas usadas para fazer seus utensílios, redes, arco e flecha. A degradação também reduz a presença da caça, frutos e de fontes de água limpa.
Uirá Garcia explica que o desmatamento e a degradação têm afetado a produção natural de mel, um dos principais alimentos dos isolados. “São quatro ou cinco dezenas de espécies de abelhas que produzem mel. Sem essas árvores, as abelhas não fazem suas colmeias, vão embora ou até mesmo desaparecem. Por sua vez, o mel, que é um alimento culturalmente central para os Awá e para os isolados, fica completamente ameaçado, além, é claro, de ter um impacto nesses insetos polinizadores que fazem a própria floresta”, detalha. O crescimento de raízes como inhames e batatas bravas, outra base da alimentação dos isolados, também é afetado. “No caso dos isolados, o resultado da extração de madeiras é direto e provocará fome e morte”, alerta o antropólogo.
Outra ameaça é a falta d’água. Pequenos cursos d’água, além de serem sazonais, em situações de desmatamento ou queimadas podem desaparecer completamente. Segundo Uirá Garcia, a sede é lembrada quando os Awá que vivem nas aldeias, já contatados, falam da vida que os parentes isolados levam. “‘Fome’ e ‘sede’ são palavras que sempre aparecem juntas, sobretudo porque as áreas altas da floresta, onde vivem esses grupos sem contato, são mais escassas de água. E o fogo e o desmatamento só agravam mais a situação”, aponta Garcia.
Na Terra Indígena Araribóia, as frentes de invasão e exploração ilegal de madeira encontram-se a cerca de 5 km de acampamentos de isolados identificados pelos agentes indígenas da TI.
Segundo Garcia, os Awá que vivem nas aldeias defendem que a floresta precisa ficar em pé pois ela é, antes de tudo, a casa dos animais e plantas. As crianças pequenas, por exemplo, se alimentam com aquilo que é considerado saudável por eles – o que é fornecido pela floresta: peixes, aves, palmitos, méis, castanhas diversas, carne de caça e gordura. E tudo isso está ameaçado. Os alimentos dos não-indígenas (arroz, feijão, óleo, café, açúcar, frango e carne de gado) fazem muito mal para os Awá. “Uma dieta baseada em comida de branco é algo que eles não conseguem manter por muito tempo, pois há toda uma concepção de saúde que passa diretamente pelos alimentos da floresta. Esses são os únicos que alimentam de verdade. Então, volto a dizer, sem floresta não tem comida, e não tem saúde: só morte, fome e tristeza”.
Agenda positiva
Soares, do IDESAM, aponta como as florestas são importantes para a manutenção dos serviços ambientais – a manutenção dos estoques de carbono, a regulação dos ciclos das chuvas etc. Tais serviços são essenciais para a agricultura, para a vida nas grandes cidades e para a economia brasileira. Mas esse potencial é pouco explorado. “Enquanto não for encontrada a solução permanente para o desmatamento, uma relação um pouco mais clara sobre o que queremos para as florestas, vamos enxugar gelo até o ponto de não termos mais floresta para proteger”, diz ele.
“É preciso mudar o discurso de que floresta não gera recursos. A floresta é um grande ativo econômico”, complementa. “Ninguém é a favor de manter Terras Indígenas sem estruturas mínimas de moradia, saúde e educação. Mas a solução não está no desmatamento e na mineração, e sim em um olhar estratégico para as florestas”, afirma, concluindo que a compensação por serviços ambientais, mercado de carbono e os produtos da floresta – cadeias produtivas sustentáveis – são alternativas a todo esse modelo de destruição.