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As transformações ambientais do Centro Oeste do Brasil na literatura

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Arthur Soffiati |

         Em 1917, o jovem escritor goiano Hugo de Carvalho Ramos lançou “Tropas e boiadas”, um livro de contos regionalistas. Os ecossistemas nativos do futuro Centro Oeste do Brasil ainda apresentavam pujança. A sociedade que se movimentava nesse cenário ainda ressoava fortes ecos do escravismo e do coronelismo. O Império continuou no interior do Brasil ainda por muito tempo após a proclamação da República. Os primeiros contos recorrem a uma linguagem rebuscada, pré-modernista, bem ao estilo de Coelho Neto. Palavras hoje em desuso são empregadas para pintar uma paisagem quase imóvel, sem atores. Aos poucos, os contos vão mostrando a sociedade da época, tão apreciada pelo autor. Brancos rudes invasores dos sertões, derrubando árvores, abatendo animais, humilhando, ferindo e matando índios e negros. Duelos sangrentos entre eles. Escravidão por dívidas. Uma terra sem lei. Um sertão maravilhoso ocupado por fazendas e com raras cidades. O mais longo conto do livro, “Gente da gleba”, é também o mais forte deles, divagando o autor entre a descrição da paisagem e a trama vivida por seus habitantes.

Dando um grande salto no tempo, encontramos um dos maiores escritores goianos. Trata-se de Bernardo Élis, que lançou, em 1944, o livro de contos “Ermos e gerais” pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos. A crítica especializada teceu rasgados elogios ao livro. Ele se insere na fase regionalista da literatura, que terá em João Guimarães Rosa seu último grande expoente. O conto mais notável do livro é, sem dúvida, “André louco”, que figurará em livro do mesmo nome publicado em 1978 (Rio de Janeiro: José Olympio). Élis nasceu em Corumbá de Goiás, a 15 de novembro de 1915, e morreu em 30 de novembro de 1997. Além do livro marco, ele escreveu ainda o antológico “Veranico de janeiro” (Rio de Janeiro: José Olympio, 1966), também de contos. O mais contundente conto do livro é “A enxada”, verdadeiramente magistral. Dele é também o romance “O tronco”, (Rio de Janeiro, José Olympio). Em toda sua obra, aparece uma região rude, descrita com palavras fortes. A urbanização avança, mas as tradições ainda imperam. E elas são mostradas pelo autor de forma impiedosa.

Também em Corumbá de Goiás e também em 1915, nasceu outro grande e famoso escritor do Centro Oeste. José Jacinto Veiga, ou simplesmente José J. Veiga, só publicou seu primeiro livro em 1959. “Cavalinhos de platiplanto” reúne contos que não perdem o sabor regional, geralmente aos olhos infanto-juvenis, mas que introduzem, na região, o maravilhoso, o surreal e o fabuloso. O conto “A usina atrás do morro” parece o embrião de “A hora dos ruminantes” (1966) e “Sombras de reis barbudos” (1972), romances em que ele cria um cenário fantástico ao lado do cotidiano de pequenas cidades imaginárias habitadas por pessoas pacatas. Críticos literários enxergaram nesses romances fábulas que retratavam o regime militar brasileiro. A observação é bastante pertinente. Mas o conto “A usina…” tem o mesmo caráter dos romances e é anterior ao golpe de 1964. Parece que eles retratam mais o conflito entre tradição e modernização.

         Nas fábulas de J. J. Veiga, o normal, o regular, são interrompidos por um acontecimento de notáveis proporções que quebra a rotina de uma pequena cidade de forma bastante estranha. A cidade é invadida por pessoas adventícias, com hábitos destoantes da norma, pretendendo instalar algo misterioso que todos repelem a princípio. A cidade é invadida por cachorros e bois. Por fim, o corpo estranho se retira, tão misteriosamente como chegou. A norma e a rotina retornam à vida pacata das pessoas.

Coube ao professor e crítico literário Davi Arriguci Jr. narrar a transição de um mundo rural antigo a um mundo rural e urbanizado novo no Centro Oeste. Na novela “Ugolino e a perdiz” (São Paulo: Cosac & Naify, 2003), o autor, numa narrativa enxuta e indireta, mostra como a natureza é suplantada pela cultura. A novela se passa no Cerrado em data não especificada. Sabe-se apenas que a vegetação nativa está sendo destruída com o fogo e com a aplicação de agrotóxicos. Essa mudança está afugentando a caça, principalmente a perdiz, tão apreciada pelo caçador Ugulino, neto de italiano. Ele culpa os maus caçadores, que não respeitam fêmeas e época de procriação. Os antigos caçadores se assustavam com o avanço das modernas máquinas sobre o Cerrado, abrindo caminho para vastas plantações de soja, cana e laranja. É o que se conhece atualmente por agronegócio.

Em direção ao oeste do Centro Oeste, encontramos a figura de Ricardo Guilherme Dick, escritor pouco conhecido no Sudeste. Ele nasceu em 1936, em Chapado dos Guimarães, e morreu em 2008, deixando vários livros. Nos três contos reunidos em “O velho moço e outros contos” (Cuiabá: Carlini e Caniato, 2011), o autor envereda por questões existenciais, como a vida e a morte, mas não deixa de retratar um cotidiano já transformado pela modernidade, pelo agronegócio, pelas preocupações ambientais, pela crítica política e pelo dia a dia. A transição do sertão para a cidade está descrita no primeiro conto: “Russel entrou na cidade montado no seu cavalo. Nunca se havia visto alguém montado a cavalo dentro da cidade, saturada de carros. Cuiabá estava plenamente cheia de veículos e mostrava-se moderna. Russel chegou à rua Cândido Mariano, a rua das Óticas, onde morava seu irmão Blanziflor, deixou o cavalo amarado num poste e entrou na casa…”

O poeta Gilberto Mendonça Teles mostrou em que se transformou o cerrado em vários poemas concretos, poemas em que as palavras imitam a concretude da vida. Um poema exemplar é “O mato grosso de Goiás”.

         Em “Erva brava”, seu primeiro livro, Paulliny Tort, reúne contos ambientados no vilarejo de Buriti Pequeno, onde o rio Amanaçu está bastante presente. A autora se alinha, neste livro, à nova literatura regionalista. Seus tipos são interioranos, mas “O rio Amanaçu agora fede, às vezes mais que fossa. Ficou assim depois das granjas de galinha e de porco, que despejam o mingau dos esterqueiros na água. A vila apodrece e os peixes morrem. O interior do Cerrado seria assim uma espécie do atual sertão nordestino de Ronaldo Correia de Brito. Mas falta à autora a força do escritor pernambucano.

         Mas a literatura do Centro Oeste continua sua marcha mostrando as transformações ambientais. Em 2021, Fabiane Guimarães lançou “Apague a luz se for chorar” (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2021), seu primeiro romance. A personagem principal volta a Pirenópolis, sua cidade natal. O livro mostra o contraste entre Brasília, a cidade grande, e Pirenópolis, a cidade tradicional que se moderniza. Por trás da trama, a autora pinta discretamente as transformações no meio urbano. São novos tempos. O foco não se localiza mais na transformação de uma paisagem nativa para uma paisagem humana (antrópica). Em “Como se fosse um monstro” (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023), seu segundo romance, a autora se concentra em Brasília e em suas cidades-satélites. O tema agora é a pobreza das cidades periféricas e a riqueza de certos moradores de Brasília e de toda uma rede de exploradores formada por chefes de quadrilha, médicos, enfermeiras, clínicas, hospitais, retiros que exploram a maternidade como negócio. O livro narra a vida de uma mulher que foi explorada como barriga de aluguel.

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