As florestas amazônicas são globalmente importantes para o armazenamento de carbono, o sistema climático e a diversidade biológica. Por isso, a importância de estudar como esses ecossistemas estão respondendo às mudanças climáticas e, em especial, às secas, é fundamental. No entanto, diversas pesquisas frequentemente desconsideram um componente crítico do ciclo hidrológico: as águas subterrâneas.
Até agora, pesquisas ecológicas têm se concentrado quase inteiramente em florestas que crescem sobre condições de lençol freático profundo, deixando as florestas em lençóis freáticos rasos, que compreendem aproximadamente 50% da Bacia Amazônica, pouco estudadas. A ausência dessas avaliações influencia seriamente nas projeções do futuro dessas florestas.
Figura: A distribuição da profundidade do lençol freático na bacia Amazônica, mostrando a dominância de lençol superficial (azul) principalmente na porção oeste.
Em vista disso, um artigo desenvolvido pela pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA/MCTI), Flávia Costa, em parceria com a professora Juliana Schietti da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e os pesquisadores Scott Stark e Marielle Smith da Universidade Estadual de Michigan, apresenta uma ampla revisão da importância da profundidade do lençol freático (ou seja, a distância vertical entre a superfície do solo e o limite superior da camada de água subterrânea) nas respostas da floresta amazônica às secas provocadas por mudanças climáticas.
Com base na revisão de estudos anteriores e novos dados obtidos principalmente dentro dos programas PELD e PPBio, foi feita uma análise do potencial das florestas com lençol freático raso, ou seja, com a reserva de água mais próxima às raízes, em atuar como “refúgios hidrológicos”, mostrando resistência às secas enquanto outras florestas com lençol freático mais profundo são afetadas negativamente.
Isso acontece porque durante os anos “normais” ou sem seca, há excesso de água no solo nas florestas com lençol freático raso, com consequentes baixos níveis de oxigênio, que acabam tendo taxas de mortalidade mais altas, e são menos produtivas. Entretanto, durante as secas moderadas, essas florestas conseguem atingir um “ponto ideal”, sem déficit ou excesso de água. A seca encurta a duração do período estressante de encharcamento do solo, aumentando efetivamente a duração da estação de crescimento e resultando em menor mortalidade e maior produtividade. Essa observação leva à hipótese de que locais com diferentes condições do lençol freático têm respostas altamente contrastantes às secas.
Figura: A distribuição da profundidade do lençol freático na escala local, desde bem raso do lado esquerdo até profundo no lado direito, e como a profundidade das raízes segue este padrão.
A pesquisadora do INPA, Dra Flávia Costa, destaca que “a perspectiva apresentada neste estudo tem grande relevância para se pensar o direcionamento das pesquisas em mudanças climáticas e políticas públicas para a conservação da biodiversidade e serviços ambientais. A pesquisa precisa claramente incorporar a hidrologia do solo e a água subterrânea no delineamento das parcelas de monitoramento e sua distribuição, na modelagem do funcionamento da floresta e balanços de carbono. As políticas públicas precisam incorporar o planejamento de conservação de áreas com maior potencial para manter a biodiversidade e os serviços ambientais como a regulação do CO2 e água no futuro sob mudanças climáticas, e estas áreas são definidas pela hidrologia do solo. Não adianta conservar apenas o que tem alto valor hoje, é necessário antecipar e conservar o que vai ser crítico amanhã. Bacias de drenagem completas precisam ser conservadas para garantir o abastecimento da água subterrânea e assim o suprimento de água para as plantas que regulam o clima.”
Por outro lado, a professora Juliana Schietti, da UFAM, alerta que “As florestas com lençol freático superficial não devem ser tratadas como a solução pronta para lidar com um clima em que as secas são mais frequentes. Essas florestas devem ser priorizadas para conservação pelo seu papel como sumidouro de carbono durante secas moderadas, mas a conservação da Amazônia precisa ser pensada como um bloco único e continental que conecta o oceano Atlântico aos Andes e que é responsável pela produção de chuvas que abastecem regiões mais ao sul da América do Sul. Sem o grande bloco de florestas com lençol freático raso e profundo, o fluxo de chuvas que se inicia no Atlântico será interrompido.”
O estudo desafia a visão predominante de que as mudanças climáticas terão efeitos negativos generalizados sobre as florestas amazônicas. No entanto, é destacado que as florestas com lençol freático raso podem ser mais vulneráveis a secas mais severas, uma vez que as árvores nessas áreas evoluíram em condições úmidas e, portanto, carecem de adaptações para tolerância à seca.
Quanto ao papel das florestas com lençol freático superficial na mitigação do aquecimento global, o pesquisador da Universidade Estadual de Michigan, Scott Stark explica “As florestas tropicais globais estão contribuindo com um serviço ecossistêmico crítico ao absorver através da fotossíntese, grande parte do CO2 emitido pela atividade humana, armazenando esse excesso de carbono em sua madeira. O problema é que esse serviço depende de boas condições de crescimento e quando as florestas tropicais sofrem forte seca, mais árvores morrem do que crescem. Neste caso, o carbono é emitido para a atmosfera piorando o aquecimento! Infelizmente, grandes secas estão se tornando mais comuns nas florestas tropicais por causa das mudanças climáticas, o que significa que esse serviço ecossistêmico crítico está sendo ameaçado (e não apenas por causa do desmatamento, o outro grande fator).”
O pesquisador ainda complementa, esclarecendo que “Nosso estudo sugere que a situação poderia ser muito pior se não fossem as florestas com lençol freático raso. Considere a porção mais úmida da Amazônia onde os lençóis freáticos rasos são comuns: nosso estudo levanta a perspectiva de que a seca moderada nessas regiões pode aumentar a produção lá, potencialmente mudando o impacto geral do carbono na Amazônia para menos severo. Ainda assim, muito é desconhecido: o crescimento em florestas de lençóis freáticos rasos pode ser resiliente ou até aumentado por secas moderadas, mas as árvores que vivem lá são menos propensas a ter as características necessárias para sobreviver a secas fortes. Isso pode tornar essas regiões suscetíveis a grande mortalidade no futuro se as mudanças climáticas e o desmatamento regional tornarem as secas suficientemente severas. Por essas razões, entender a contribuição da floresta de lençóis freáticos rasos para o carbono florestal na Amazônia é uma prioridade crítica de pesquisa.”
Figura: Cenários de resposta do balanço de carbono considerando os papéis diferenciados das florestas com lençol freático profundo (linha vermelha), raso (azul) e a combinação entre elas (preto). Nota-se que a tendência de perda de carbono nas florestas com lençol profundo pode ser contrabalançada em parte pelas florestas em lençol raso.
“Compreender os fatores que promovem a resiliência versus a suscetibilidade das florestas amazônicas às mudanças climáticas é fundamental para definir as prioridades de conservação e compreender a probabilidade de se chegar a um ‘ponto de inflexão’, além do qual essas florestas globalmente importantes podem entrar em colapso”, declara a pesquisadora do INPA, Flávia Costa.
Pesquisadores comentam
O pesquisador do INPA, Dr. Philip Fearnside, um dos cientistas mais influentes do Brasil em mudanças climáticas, declara que “o trabalho traz importantes dados para todos que se preocupam com a floresta amazônica. Trata-se de uma extensa revisão da literatura sobre o papel da profundidade do lençol freático nas consequências de secas para a floresta. Este papel não é tão simples, pois depende tanto da profundidade normal do lençol freático em cada local, como da intensidade da seca. No caso de florestas com lençol freático profundo, como as na Amazônia oriental, as secas sempre prejudicam as árvores. Por outro lado, florestas com lençol freático raso, como ao longo da rodovia BR-319 e na vasta região “Trans-Purus” no oeste do estado do Amazonas, uma seca apenas “moderada” pode beneficiar as árvores, mas se a seca for “severa” as árvores ficam ainda mais sujeitas à mortalidade do que as árvores adaptadas aos lençóis freáticos profundas na Amazônia oriental”, explica.
O biólogo que há mais de 45 anos pesquisa a Amazônia ressalta ainda que as descobertas do artigo “acendem um alerta sobre o perigo de passar um ponto de não retorno na Amazônia ocidental, levando à transformação da área em uma vegetação não florestal e à perda dos serviços ambientais vitais da região Trans-Purus, inclusive a reciclagem da água que é transportada para São Paulo pelos “rios voadores”. Os benefícios para esta floresta nas secas “moderadas”, com crescimento aumentado, não compensariam pela morte de árvores em secas “severas”, que devem aumentar em frequência com a continuação do aquecimento global. Se uma árvore morre em uma grande seca no clima alterado previsto, não importa se aquela árvore desfrutou de algumas ajudas para seu crescimento nos anos anteriores. E as grandes secas não só matam árvores pelos efeitos fisiológicos da falta d’água, que é o foco do trabalho: elas também morrem quando são queimadas em incêndios florestais, que também aumentam com a ocorrência de secas. A Dra. Flávia e colegas estão de parabéns por trazer uma luz para um conjunto importante de fatores que afetam a vulnerabilidade da floresta amazônica às mudanças climáticas que já estão em curso.”
Sobre o artigo
O artigo foi publicado nesta segunda-feira (17) como um Tansley Review na prestigiada revista científica New Phytologist. É o primeiro produto de um grande projeto de colaboração entre a Universidade Estadual de Michigan, INPA e UFAM, financiado pela Fundação Nacional da Ciência (National Science Foundation), agência governamental dos EUA, que pretende investigar a influência da profundidade do lençol freático nas respostas da floresta amazônica às secas promovidas por mudanças climáticas.
Os conceitos desenvolvidos nesta revisão derivam de um extenso corpo de trabalho desenvolvido em especial na última década pelas pesquisadoras Flávia Costa (INPA) e Juliana Schietti (UFAM), bem como com a contribuição de muitos estudantes e colaboradores do Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração (PELD) e do Programa de Pesquisas em Biodiversidade (PPBio) do INPA. Importante destacar o papel imprescindível das parcelas de monitoramento de longo prazo, sem as quais não é possível compreender o funcionamento da floresta frente às mudanças climáticas.
Vídeo-sumários do artigo estão disponíveis em: Português, Español e English.