Arthur Soffiati |
O caso do manguezal é bastante peculiar. Ele tem ligação com os biomas e ecossistemas à sua retaguarda e à sua frente. Algumas plantas provêm do interior e se fixam em sua periferia. São espécies associadas. Algumas chegam mesmo a invadir o ambiente exclusivo do manguezal em caso de desequilíbrios ambientais. São as invasoras. Há espécies animais que residem nele. Outras o visitam com frequência e outras ainda o frequentam esporadicamente.
Mas as espécies vegetais e animais exclusivas deles vêm navegando pelo mar. As plantas saíram da terra e se adaptaram a um ambiente de água salobra, normalmente lavado por marés. Parece que será sempre necessário explicar o manguezal toda vez que se escrever sobre ele. Esse ecossistema singular não será encontrado nas zonas temperadas e polares da Terra nem em áreas interiores. Que ninguém busque encontrar manguezais nos estuários do Ártico e do Antártico. Que ninguém busque manguezais no alto rio Amazonas ou na nascente de rios. Eles só ocorrem na zona costeira, seja em foz de rios, em praias calmas, em depressões e em rios com barra fechada e lagunas.
As espécies vegetais exclusivas de manguezal desenvolveram adaptações para viver em ambiente excessivamente úmido e salino. Além das folhas, as plantas respiram também por sistemas radiculares que saem do solo -os pneumatóforos- e trocam gases por poros denominados lenticelas. Elas se fecham com as marés altas e se abram quando elas baixam. Existem, como em todas as plantas completas, raízes que se dirigem ao fundo dos solos para obter nutrientes.
As plantas lidam com o excesso de sal, seja barrando sua entrada, seja dissolvendo-o no seu organismo, seja expelindo-o pelas folhas. A produção primária dos manguezais é fantástica. As folhas já caem da árvore em processo de semi-decomposição. Na água, elas são fragmentadas mais ainda e disponibilizadas como alimentos para animais residentes, semi-residentes e eventuais. O ambiente é excelente para a reprodução de espécies provenientes do mar ou do rio por ser protegido. O manguezal protege a zona costeira da erosão marinha e dos ventos, além de excelente para armazenar gás carbônico, principal causador das alterações atmosféricas.
Em resumo, o manguezal, em seus diversos tipos fisiográficos e dimensões, é uma excelente fonte de alimento para animais e humanos. Em 1627, frei Vicente do Salvador descreveu o manguezal como uma fantástica fonte de alimento para humanos: “Mariscos há em muita quantidade, ostras, umas que se criam nos mangues, outras nas pedras, e outras nos lodos, que são maiores. Nas restingas de areia há outras redondas e espalmadas em que se acha aljôfar miúdo, e dizem que, se as tirassem do fundo, de mergulho, achariam pérolas grossas (…) Há briguigões, amêijoas, mexilhões, búzios como caracóis, e outros tão grandes que, comida a polpa ou miolo, fazem das cascas buzinas em que tangem e soam mui longe (…) Há muitas castas de caranguejos, não só na água do mar e nas praias entre os mangues, mas também em terra, entre os matos, há uns de cor azul chamados guaiamus, os quais em as primeiras águas do inverno, que são em fevereiro, quando estão mais gordos e as fêmeas cheias de ovas, se saem das covas e se andam vagando pelo campo e estradas e metendo-se pelas casas para que os comam.” (SALVADOR, Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1982).
Alguns livros têm sido escritos sobre os pródigos recursos alimentícios dos povos nativos da América pré-colombiana e dos tempos coloniais. Os principais são “Delícias do descobrimento”, de Sheila Moura Hue (Rio de Janeiro: Zahar, 2008) e “Nem garfo nem faca” de Rosa Belluzzo (São Paulo: Senac, 2010). Ambos usam como fonte de informações registros de cronistas coloniais e viajantes, principalmente. Os recursos alimentares são, assim, descontextualizados de seus ecossistemas. Supõe-se que as informações do primeiro século de colonização limitem-se à zona costeira, onde os colonos europeus atuaram no cultivo da cana-de-açúcar e na operação de engenhos. Assim, as informações colhidas referem-se à Mata Atlântica e à Zona Costeira. Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos, em “A culinária caipira da paulistânia” (São Paulo: Fosforo, 2021), estudam a alimentação praticada no território denominado Paulistânia, correspondente à metade sul da Mata Atlântica e parte do Cerrado. Esse território excluía a Zona Costeira e correspondia à economia interiorana, onde o latifúndio, a monocultura e a escravidão não tiveram o mesmo peso que no litoral. Dominava a economia bandeirante, muito abundante e variada. O livro “A alimentação sertaneja e do interior da Amazônia”, de Alberto José de Sampaio (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944), mantém estreita relação entre biomas e alimentação.
O livro “Atlas da culinária na baía de Todos os Santos”, organizado por Jaílson de Andrade, Venessa Hatje, Gal Meirelles e Núbia Ribeiro (Salvador: EDUFBA, 2013), aproxima-se mais do manguezal. Mas toma a maior baía do Brasil, em si, como um grande ecossistema, contendo ilhas e cercado de restingas e manguezais. O peixe predomina nas receitas.
A questão final consiste em saber se o manguezal, como um ecossistemas da Zona Costeira, ao lado de outros ecossistemas (ilhas litorâneas, planícies aluviais, restingas, campos salinos e costões rochosos), é capaz de fornecer os nutrientes necessários à vida humana. Parece não haver dúvidas quanto aos recursos animais. O manguezal é pródigo em moluscos, crustáceos, peixes e répteis. Até mesmo alguns mamíferos comestíveis pelos humanos podem ser encontrados em seu âmbito. Existem até livros de receitas preparadas com recursos animais do manguezal. “Culinária dos frutos do mangue”, de Claudomira da Gama Alves, Inesila Monteiro da Silva e Maria da Conceição dos Reis Sampaio (Bragança (PA): Emater, 1998), contém 19 pratos. O livro “Cozinha da maré”, da associação Mães do Mangue (Belém: Instituto Iacitatá Amazônia Viva, 2021), contém maravilhosas receitas com turu, ostras, sernambis, siris, caranguejos, camarões e peixes.
A alimentação humana depende de vegetais? Se depende, os manguezais podem fornecê-los? O ambiente salino não é propício para espécies não adaptadas a ele. Só um manguezal desequilibrado é invadido por outras espécies, mesmo assim pouco ou não comestíveis pelo ser humano. Em sua borda, contudo, algumas plantas comestíveis podem ser encontradas, como o miraculoso ora-pro-nobis, um cacto com folhas comestíveis e propriedades medicinais.
O sal como tempero não é problema. No século XVII, o cientista holandês Guilherme Piso observou sobre a siribeira (cereíba): “As folhas desta árvore, com o sol a brilhar, contêm na superfície um alvíssimo sal; com o tempo nublado ou à noite, o sal se derrete e adere como orvalho. De dia é seco e alvíssimo e pode ser tirado com os dedos. De duas ou três folhas apenas se colhe o suficiente para salgar bem um caldo” (“História natural e médica da Índia Ocidental”. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957).
E o açúcar? É mais difícil obter um adoçante no manguezal. Deve-se considerar primeiro que o organismo humano produz açúcar a partir de alimentos salgados. Segundo, as flores de espécies exclusivas de manguezal contêm alto teor de néctar, notadamente a flor da siribeira em suas duas espécies existentes no Brasil. O manguezal é ambiente altamente propício para a apicultura, sobretudo com espécies nativas da América. Já existem apicultores em áreas de manguezal.