Relatório do Instituto Talanoa mostra que governo brasileiro corrigiu rumos da política climática em 2023, mas patina em adaptação, transição energética e agricultura
Às vésperas da 28ª Conferência das Nações Unidas sobre mudanças do clima, um novo relatório mostra que o Brasil está longe de cumprir com os compromissos climáticos apresentados sob o Acordo de Paris. A conclusão é dos especialistas do Instituto Talanoa, que fizeram um amplo e profundo levantamento de todas as políticas climáticas, nacionais e setoriais. O trabalho identificou 17 avanços firmes, oito avanços iniciais, 15 áreas sem progresso e uma área com retrocesso no que se refere a políticas públicas e mudança do clima no Brasil em 2023. O controle do desmatamento na Amazônia e a criação do mercado regulado de carbono são as áreas mais promissoras em termos de redução de emissões. O estudo inclui recomendações para que o Brasil cumpra os compromissos na atual década, considerada crítica para o clima, e pavimente o caminho para emissões líquidas zero até 2050, conforme compromisso assumido na Convenção do Clima. O estudo foi entregue aos ministros da Fazenda e Meio Ambiente e deverá ser compartilhado também com o Ministro da Agricultura e parlamentares da Câmara e do Senado Federal.
“Este ano a agenda climática saiu de um nicho, dentro do governo, e se espraiou para a política econômica, financeira, tributária. Porém esse avanço está se dando sem meios adequados de governança, ou seja, sem uma coordenação que favoreça a eficácia e o equilíbrio entre o que precisamos fazer para reduzir as emissões dos gases causadores do efeito estufa e o que precisamos fazer para nos adaptarmos ao clima que já mudou”, explica Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa. “Em alguns setores, como habitação social, infraestrutura e saúde, ainda estamos na estaca zero, sem qualquer adaptação da política pública , apesar dos impactos que já estamos vendo”, alerta.
O relatório “Política Climática por Inteiro” mostra que embora o Brasil chegue à COP 28 embalado pela boa notícia da queda de 22% no desmatamento da Amazônia, o país também se sentará à mesa de negociações sendo cobrado sobre o corte de 480 milhões de toneladas de CO2e em três anos para alcançar sua meta para 2025. Ou seja, uma África do Sul em emissões anuais, em curto período de tempo. Devemos chegar ao ano da COP de Belém emitindo 250 milhões de toneladas de CO2e acima da meta, mesmo no cenário considerado desejável, segundo dados do próprio governo, em projeções usadas no PPA (Plano Plurianual de Investimentos) para o período de 2024 a 2027. A boa notícia do relatório é que a meta subsequente, de 2030, pode ser alcançada de acordo com a projeção oficial, mesmo representando um limite de emissões líquidas 33% menor do que o dado do último ano disponível nas estimativas oficiais (2020).
“Há uma incerteza grande ainda sobre os resultados das políticas climáticas, porque elas ainda estão sendo construídas. Tanto as estratégias nacionais como os planos setoriais de mitigação dos gases de efeito estufa como de adaptação às mudanças climáticas estão por ser definidas”, avalia Marta Salomon, especialista sênior do Instituto Talanoa.
Outra conclusão do relatório é que a tendência de queda expressiva do desmatamento na Amazônia fará com que os setores de agricultura e energia se tornem “a bola da vez” da descarbonização, além de impor um olhar mais exigente para a proteção do Cerrado, exigindo esforços maiores nos próximos anos. Uma das constatações do relatório é que alcançar a meta de 2030 ainda é possível, desde que haja uma radical redução do desmatamento, a restauração florestal e a precificação do carbono, via mercado regulado. Apenas este último poderá precificar 16% das emissões brasileiras, se a proposta de lei for aprovada na forma como passou pelo Senado. O Instituto Talanoa trabalha com cenário de corte mais ambicioso nas emissões, que seria possível mediante uma radical redução do desmatamento, a restauração florestal e a precificação do carbono. Em relação ao clima que já mudou, o relatório traz um panorama preocupante: poucos municípios brasileiros e setores da economia estão preparados para enfrentar os impactos das mudanças climáticas e uma estratégia nacional e planos setoriais de adaptação devem tomar forma apenas ao longo de 2024 e 2025.
O relatório do Instituto Talanoa é particularmente importante não só porque o clima está mostrando para todos os brasileiros porque precisamos reduzir urgentemente as emissões que o estão alterando. Neste ano, os negociadores que se reunirão na conferência de Dubai terão a responsabilidade de se debruçar sobre a implementação das metas apresentadas pelos países signatários do Acordo de Paris, avaliar a distância das chances de equilibrar o aquecimento global de 1,5oC e começar a traçar rotas de correção. Nesse contexto, o relatório da Talanoa preenche um hiato, já que o Brasil não tem ainda uma avaliação oficial das suas políticas climáticas e do alcance dos seus compromissos, muito embora se encontre em um momento de reconstrução da agenda depois de retrocessos registrados nos quatro anos do governo anterior. Além disso, o país deverá ocupar uma posição-chave nas negociações, já que é o quarto maior emissor e presidirá a COP 30, quando novas metas climáticas devem ser apresentadas por todos os países.
Uso da terra
Em números, o alinhamento às metas de mitigação da NDC brasileira corrigida em 2023 significa:
- Reduzir em aproxidamente 480 milhões de toneladas de CO2e o nível de emissões até 2025, o que equivale a quase uma África do Sul;
- Reduzir a taxa atual de desmatamento na Amazônia em 33,3% até 2025;
- Reduzir a taxa atual em 25% ao ano, pelos próximos 5 anos, para alcançar o zero desmatamento na Amazônia até 2030;
- Reduzir em aproximadamente 600 milhões de toneladas de CO2e o nível de emissões até 2030, o que equivale a uma Austrália.
Uma parte da trajetória de descarbonização do Brasil já está em curso: documentos do governo brasileiro sinalizam o desejo de reduzir o desmatamento na Amazônia Legal quase à quarta parte em 2027, por exemplo. Porém, se alcançada, a meta de desmatamento zero, tanto na Amazônia como na Mata Atlântica, até 2030, somada a uma queda de 17% no desmate dos demais biomas, permitiria que o setor de uso da terra alcançasse emissões líquidas negativas já no início da próxima década (-123 MtCO2e a – 580 MtCO2e, em 2030). Se junto com isso o Brasil promover a restauração de 4,8 milhões de hectares de florestas nativas até 2030 e ampliar em 4,4 milhões de hectares a área de florestas homogêneas plantadas, conseguirá reduzir de 63% a 80% suas emissões de gases de efeito estufa.
Ainda segundo o relatório, ações como restauração de florestas nativas e aumento de áreas protegidas podem levar a 747 MtCO2e retirados da atmosfera em 2030. “Isso requer a criação de uma cadeia produtiva que inclua de sementes e mudas a logística e mão-de-obra – e essa é a outra boa notícia: estamos falando na criação de empregos e oportunidades de geração de renda, principalmente no campo”, destaca Natalie.
Agropecuária
No caso da agropecuária, o relatório também encontrou alguns avanços, embora as emissões desse setor estejam aumentando. A redução dos juros dos financiamentos para custeio para os proprietários rurais sem passivos ambientais ou em processo de regularização ambiental ou ainda que adotem práticas agropecuárias consideradas sustentáveis é uma forma de premiar o produtor que está fazendo sua parte. Em outra frente, há a promessa de impedir a emissão de um bilhão de toneladas de carbono entre 2021 e 2030, mediante a recuperação de 30 milhões de hectares de pastagens degradadas e o plantio de 4 milhões de hectares de florestas, bem como a adoção de técnicas como plantio direto e integração lavoura-pecuária-floresta em mais de 22 milhões de hectares e o manejo de resíduos da produção animal. Se isso acontecer, em dez anos, o Brasil evitará que seja lançado na atmosfera o equivalente ao que o setor da agropecuária emite atualmente em 20 meses. De forma geral, no entanto, não houve nas políticas para o setor uma mudança de rota significativa em 2023 e faltam medidas claras para o corte de 30% nas emissões de metano, lideradas pelo processo digestivo do gado, segundo compromisso já assumido pelo Brasil.
Energia
Apesar de uma matriz energética bastante limpa em comparação a outros países, a queima de combustíveis fósseis – principalmente no transporte de carga, passageiros e na indústria – é a terceira fonte das emissões brasileiras de gases de efeito estufa. Na última década, o país registrou emissões acima de 400 milhões de toneladas de CO2e por ano no setor, exceto em 2020, primeiro ano da pandemia da Covid-19. Atualmente o Brasil tem em fontes fósseis mais da metade (50,8%) de sua matriz: petróleo e seus derivados ocupam 35,7% da matriz energética, gás natural, 10,5% e carvão mineral, outros 4,6%.
As perspectivas futuras não são animadoras: o Plano Nacional de Energia 2050, instrumento de planejamento a longo prazo, projeta o aumento da demanda e também da produção de petróleo, com o Brasil se mantendo como grande produtor de hidrocarbonetos e gás natural até meados deste século. Esse cenário contrasta com aquele traçado pela Agência Internacional de Energia (AIE), que projeta o pico da demanda mundial por petróleo, gás natural e carvão mineral antes de 2030. Para o aquecimento global não ultrapassar o 1,5 C, seria necessário não aumentar a produção de energia fóssil depois de meados da nossa atual década.
Essa contradição de manter a produção de petróleo por mais tempo num cenário de transição energética está no centro da política pública para o setor, ainda em fase de estruturação. Enquanto não surge clareza sobre ações estruturantes de descarbonização do setor energético, o governo tem lançado iniciativas pontuais que favorecem a redução das emissões do setor, tais como o programa nacional de combustível sustentável de aviação, o Programa Combustíveis do Futuro (de descarbonização na área de transportes) e o Programa Energias da Amazônia. Desde maio, tramita na Câmara o projeto de lei que inclui o hidrogênio verde (H2V) na Política Energética Nacional. Em outra frente, o governo prevê investimentos de R$ 307 milhões (R$ 281 milhões até 2026) para levar adiante levantamentos geológicos sobre os chamados minerais críticos ou estratégicos para a transição energética. Mas falta uma política clara de exploração sustentável de minerais estratégicos, assim como uma definição se o país será apenas exportador desses recursos, na forma de commodities.
O relatório recomenda a adaptação do sistema interligado nacional, de modo que medidas de “mal adaptação” não prejudiquem a descarbonização do setor elétrico. Sugere ainda estabelecer um cronograma de transição energética alinhado com a meta de neutralidade climática, com foco nos combustíveis fósseis.
Indústria
A indústria brasileira é a quarta maior contribuinte para as emissões brasileiras de gases de efeito estufa, respondendo por 11% do total. Sua descarbonização até a meta de zero líquido em 2050 é complexa, pois envolve uma série de fatores, como financiamento, tecnologia, infraestrutura, qualificação de pessoal, regulamentação etc. Esforços conjuntos governo-indústria são necessários, portanto, e o alinhamento entre descarbonização e neoindustrialização pode ser dado nos próximos passos do Plano de Transformação Ecológica. Esse objetivo poderá ser parcialmente alcançado também com a implementação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões – o mercado regulado de carbono. Segundo análises do Instituto Talanoa, se a proposta de lei que tramita no Congresso nacional for aprovada tal como passou pelo Senado, o mercado regulado poderá precificar 16% das emissões brasileiras.
Em recente análise dos especialistas do Instituto Talanoa, o PL 412/2022, que está em tramitação no Congresso, é a melhor proposta da safra recente de PLs visando instituir um mercado regulado de carbono no Brasil. O PL estabelece elementos essenciais, como limites de emissões e critérios de alocação dos direitos de emissão e governança, garantindo integridade e eficácia ao sistema. Também impõe penalidades robustas, desenhadas para assegurar que sempre será mais vantajoso cumprir a lei do que desrespeitá-la.
“Países como China, Austrália, EUA, Canadá, Coreia do Sul e Japão já estão dando passos significativos na promoção de políticas industriais verdes. O Brasil precisa aproveitar suas vantagens naturais e tomar medidas deliberadas para superar os desafios de educação e qualificação de mão-de-obra. Ao adotar uma política industrial verde, o Brasil pode impulsionar a inovação, criar empregos e promover um crescimento econômico sustentável”, destaca o relatório.
Pontos de preocupação
- A validação do cadastro ambiental rural (CAR) passou de 0,40% em 2020 para 1,34% em 2023, o que revela uma melhoria à margem e uma situação preocupante, dado que esse instrumento está em implementação desde 2012;
- A idade de abate do rebanho ainda se mantém entre 37 a 42 meses, sendo que a meta é que alcance 34 meses até 2030.
- As emissões da geração de energia elétrica cresceram 46% entre 2020 e 2022 e são hoje 442% maiores do que o almejado, de forma conservadora, para 2030;
- O crescimento da produção de barris de petróleo está em dia para alcançar 76,6% em 2030, quando o país almeja chegar a 5,3 Mbarril/dia em comparação com os 3 Mbarril/dia atuais; o fato dessa meta guiar a política energética contrasta com a falta de avanço na formulação de uma política de transição energética alinhada com a neutralidade climática em 2050; ainda que maior parte seja direcionada à exportação, produzirá significativo impacto em termos de emissões globais de gases de efeito estufa;
- Houve 26% de aumento no consumo interno de gás entre 2020 e 2022, com tendência de alta; As emissões totais da oferta de energia (sem transporte) seguem estáveis desde 2020, distantes em cerca de 204% da meta projetada para 2030.
Avanços observados:
- As ações de fiscalização ambiental cresceram 86% , de 3.261 autos de infração contra a flora pelos órgãos ambientais em 2020 para 6.077 em 2023;
- O orçamento autorizado para fiscalização ambiental cresceu 49,5%, de R$ 78,1 milhões em 2020 para R$ 116,8 milhões em 2023, ainda que tenha sofrido queda de 16% (R$ 19,5 milhões) entre 2022 e 2023;
- A produtividade agrícola cresceu 9%, de 3,64 t/ ha em 2020 para 3,97 em 2023, com suave queda de 2,5% entre 2022 e 2023;
O percentual de adição de biodiesel no diesel subiu para 12% em 2023, sendo que fora de 10% no último ano e 11% em 2020; - Os subsídios de contratação de térmicas a carvão caíram 20,5%, de R$ 928 milhões em 2022 para R$ 738 milhões em 2023, ainda que fossem menores em 2020;
- As metas de CBIOS aumentaram em 157% entre 2020 e 2023, e agora representam quase 40% do objetivo para 2030; e
A participação das energias renováveis na Oferta Interna de Energia (OIE) cresceu 6% entre 2022 e 2023, e está próxima da meta de 55% para 2030.
Onde falta avançar – exemplos:
- Governança inclusiva e participativa, de cunho nacional e não apenas federal, como a criação do Conselho Nacional da Emergência Climática.
- Adaptação da política de saúde pública aos impactos climáticos.
- Consideração de riscos climáticos nos investimentos do PAC, tanto para evitar tecnologias não resilientes e locais vulneráveis, quanto para priorizar as obras de adaptação;
- Inserir adaptação na política de habitação social e outras de cunho social, como periferias e favelas, urbanização, entre outras.
- Estruturar instrumentos de incentivo direto para transição de baixo carbono das famílias, inclusive de consumo (como troca de equipamentos domésticos, veículos e outros).
- Desenhar uma estratégia de financiamento climático, contemplando mecanismos públicos e privados, nacionais e internacionais.
- Discutir os passos para inserção de conteúdo relevante sobre mudança climática na política de educação.
- Assegurar recursos orçamentários para ações críticas, como adaptação e controle do desmatamento.
- Aprovação do PL 412/2022, da forma como está, para a criação de um mercado regulado de carbono no Brasil.
Finalização do Plano Nacional de Bioeconomia. - Regulamentação da Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA).
- Finalização da revisão do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg).
- Ligar as políticas de negócios sociais, empreendedorismo e inovação com a cadeia de reflorestamento e restauração.
- Lançamento de um programa de concessões para reflorestamento de áreas degradadas da União na Amazônia.
- Lançamento do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento do Cerrado (PP-Cerrado) e implementação efetiva.
- Definição de metas de proteção e restauração florestal para todos os biomas
- Criação de um painel de acompanhamento e relatórios gerenciais dos planos setoriais de mitigação e adaptação do setor agropecuário.
- Formulação da política pública de redução do metano que permita ao Brasil alcançar a redução de 30% nesta década proposta no acordo mundial que o país assinou em 2021 (Global Methane Pledge)
- Revisão do Plano Nacional de Fertilizantes
- Revisão da política de exploração sustentável de minerais estratégicos
- Construção de uma nova NDC mais ambiciosa e com maior participação da sociedade até 2025.