Às vésperas do Dia Mundial da Água o jornal O Estado de S. Paulo destacou na sua capa que São Paulo “registra 250% mais mortes por chuva neste ano”. Os chamados eventos climáticos extremos são a cada ano, no Brasil e no mundo, mais comuns e mais impactantes. Brasília há dez anos quebra recordes consecutivos de alta de temperatura. No dia 15 deste mês (Marco), a uma semana do Dia Mundial da Água, pipocaram manifestações no mundo e no Brasil de jovens (em greve), inspirados pela sueca Greta Thumberg (16 anos) indicada ao Prêmio Nobel da Paz, pedindo ações efetivas aos adultos e governantes para mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Enquanto isso aqui no Brasil nosso Governo Federal continua dando sinais trocados com ameaças e ações de desmonte e retrocessos em agendas socioambientais importantes.
Depois do esvaziamento das competências de demarcação e avaliação de impactos ambientais em Terras Indígenas pela FUNAI e da extinção de setores responsáveis pela agenda de clima, educação ambiental e combate aos desmatamentos no Ministério do Meio Ambiente, dentre outros retrocessos já alertados, o Governo continua avançando (e não é como água mole em pedra dura) em sua agenda de constrangimentos socioambientais.
Política fundiária anti-indígena
Recentemente, o Secretário Nacional de Política Fundiária do Ministério da Agricultura, o pecuarista e Presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan Garcia, em discurso a produtores rurais no Pará, anunciou que propriedades rurais situadas em Terras Indígenas reconhecidas e demarcadas, porém ainda não homologadas ou objeto de decisão transitada em julgado, serão retiradas do cadastro do INCRA (SIGEF), o que significa que deixarão de ser objeto de controle e monitoramento administrativo especifico do órgão para evitar usos incompatíveis com a finalidade de garantia dos direitos dos povos indígenas. Nesse assunto o STF já decidiu que o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras não começa com a homologação (ao contrário é o ato final).
Em Janeiro, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Nabhan anunciou que fará o possível para rever o máximo de demarcações na sua gestão. Os 13% do território nacional abrigados por Terras Indígenas prestam um serviço ecossistêmico fundamental para a própria produção agrícola brasileira (e ao nosso clima), pois, além de manter uma bomba de carbono (fora da mira do desmatamento), captam do lençol freático e devolvem para a atmosfera trilhões de litros de água/dia, que garantem a manutenção dos ciclos e da normalidade hidrológica fundamentais tanto para a agropecuária como para a geração de energia hidrelétrica, navegabilidade dos rios dentre outras atividades importantes para a agroindústria.
CONSEA extinto e CONAMA na linha de tiro
No campo da participação e do controle social o atual Governo Federal já demonstrou seu pouco apreço pelos Conselhos de Políticas Públicas, em especial aqueles que contam com participação social, sobretudo os afetos a questões socioambientais. Em Janeiro deste ano extinguiu atribuições do Conselho de Segurança Alimentar (CONSEA) espaço institucional criado pelo governo Itamar, por iniciativa da sociedade civil, para superar uma realidade de mais de 32 milhões de desnutridos no Brasil à época, com a formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional.
No dia 20/3, teremos uma reunião extraordinária do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) com a pauta da revisão do seu regimento interno. De acordo com membros atuais do colegiado o Governo ameaça reduzir as suas atribuições e poderes, cujas resoluções têm força de Lei, além de reduzir a participação da sociedade civil (em números absolutos e em proporção), em particular as organizações socioambientalistas. O CONAMA, criado pela Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, foi palco de importantes decisões e negociação de normas e padrões ambientais vigentes ao longo de sua história desde 1981.
Embargo ao maior programa ambiental da história do Brasil
No campo das ações para recuperação ambiental o Governo travou e pretende rever um dos programas de maior envergadura do Governo anterior que é o Programa de Conversão de multas em recuperação ambiental. Depois do Fundo Amazônia, criado pela gestão da Ministra Marina Silva, que garantiu o investimento até hoje de mais de R$1,5 bilhão em ações de gestão florestal e controle dos desmatamentos na Amazônia, o Programa de Conversão de Multas aprovado pelo Decreto Federal 9.179 assinado pelo Presidente Temer em 2017 deve garantir o maior investimento em recuperação ambiental florestal da história do Brasil. O Governo Temer, na gestão do Ministro Sarney Filho, lançou um edital para investimento de mais de R$ 2 bilhões em restauro florestal nas Bacias do Rio São Francisco e ações de adaptação às mudanças climáticas na Bacia do Rio Parnaíba. Trinta e quatro organizações da sociedade civil foram habilitadas neste edital, extremamente complexo e tecnicamente qualificado, que foi lançado (coincidentemente) na Semana da Água de 2018, em cerimônia no Palácio do Planalto.
De acordo com o IBAMA, este certame abrange projetos em 195 municípios na Bacia do São Francisco e em 213 na do Parnaíba com potencial para aplicação de mais de R$ 2,5 bilhões em multas a serem convertidas na Bacia do Rio São Francisco. Entretanto, tivemos conhecimento, por parte das organizações habilitadas no referido edital, de que está sendo gestado no Ministério do Meio Ambiente, com aval da Casa Civil, decreto que revoga a norma anterior e altera as regras do jogo, depois de iniciado o jogo. Existe a ameaça real de cancelamento do citado edital, sob a justificativa politicamente obtusa e juridicamente equivocada de que se trata de um edital com propósito de “desviar” recursos de multas ambientais de produtores rurais para ONGs.
Aliás, em relação às multas ambientais infelizmente a taxa de pagamento é historicamente inferior a 5%. A impunidade graça, e não é de hoje. Este programa, embargado pelo Presidente Bolsonaro, tem o potencial de captação e de investimento de mais de 40% das multas aplicadas, ou seja, amplia em 400% a eficácia das sanções.
Flexibilização nas sanções e multas ambientais
O Ministro do Meio Ambiente anunciou recentemente propósito de criação (no IBAMA) de uma unidade de negociação ou conciliação nos casos de multas ambientais. Embora possa soar algo inovador e equilibrado, uma câmara de negociação de multas não nos parece juridicamente aceitável. Há o devido processo legal, definido na legislação, para que o infrator irresignado, recorra da multa, dentro dos prazos e mediante os recursos e procedimentos previstos na legislação. Essa nova medida nos parece mais um drible-da-vaca no devido processo legal com vistas a facilitar a vida dos infratores com troca de multas por medidas menos constrangedoras. Sabe-se que uma medida importante adotada desde 2008 e que vem sendo crucial para frear os desmatamentos ilegais (não somente, mas, sobretudo, na Amazônia) foi o embargo do uso das áreas ilegalmente desmatadas. O que se pretende com tal medida conciliatória é rever e tornar sem efeito uma das ferramentas mais efetivas para constranger os desmatadores ilegais que é esse embargo obrigatório do uso. É sabido e amplamente estudado que, ao lado da ausência de incentivos econômicos atrativos (créditos, desburocratização e incentivos tributários) para a promoção de atividades sustentáveis a impunidade é um dos principais fatores que incentivam a irregularidade, os crimes e infrações ambientais.
Mordaça ao IBAMA e ICMBio
Soma-se a tudo isso a ordem ministerial dada recentemente para que IBAMA e ICMBio, dois órgãos estratégicos do sistema de meio ambiente do país, não falem mais diretamente com a mídia. É no mínimo preocupante. Lembrei-me da máxima popular “onde tem fumaça tem fogo”. A transparência é um valor fundamental da democracia que esse Governo já tentou abalar ao restringir por Decreto a abrangência da Lei de Acesso à Informação Pública (Lei Federal 12.527 de 2011), na tentativa de ampliar a possibilidade de gestores atribuírem sigilo a informações públicas. Essa foi (graças a Deus e ao bom senso do Presidente da Câmara, Rodrigo Maia) a primeira derrota do atual Governo no Congresso Nacional que aprovou, em Fevereiro, Decreto Legislativo revogando o Decreto anti-transparência do Presidente Bolsonaro que restringia a eficácia de Lei de Acesso à Informação. É compreensível que o ministro queira reduzir ruídos, dissonâncias e harmonizar posicionamentos públicos dos órgãos que integram o sistema por ele encabeçado. Essa tensão é comum, historicamente reconhecida. Isso é gestão, ou seja, a busca de coerência na emissão de posicionamento e compromisso na condução e execução da política. Entretanto, o caminho natural para tanto em uma República que se preze Democrática é a boa gestão, o diálogo, o convencimento, que devem resultar da qualidade, coerência e da oportunidade do líder e de suas propostas. O uso da força e do embargo (e da mordaça) não nos parece um instrumento de composição e harmonização de entendimentos entre órgãos com alta complexidade e relevância política promissora.
Tudo isso, minhas amigas e meus amigos leitores, em tão pouco tempo (menos de 80 dias), às vésperas de mais um Dia Mundial da Água, apenas um ano depois do Brasil sediar o 8º Fórum Mundial da Água. A iniciativa do atual Ministro do Meio Ambiente de lançar uma campanha e um programa nacional para reduzir a poluição e o lixo plástico em nossos mares, com a inauguração de uma armação de metal em formato de tubarão-baleia, é uma medida que deve ser reconhecida e louvável, contudo se dissolve na turbidez de tantos fatos e discursos desestruturantes de políticas estratégicas para a efetiva proteção de nossas águas, de nosso clima e da qualidade do nosso desenvolvimento.
Não examinamos aqui (ainda) os prováveis impactos do “deslocamento” do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura, e da Agência Nacional de Águas para o Ministério do Desenvolvimento Regional. Essas alterações, que ainda precisam ser aprovadas pelo Congresso (MP870/2019), também demonstram a forte inflexão deste Governo na submissão da agenda da sustentabilidade socioambiental aos outros setores de governo, sobretudo, à agricultura.