No último dia 9 deste mês (Março), 20 “cientistas” publicaram uma “Carta Aberta” ao Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em que atacam a ciência do clima e fazem ilações sobre as políticas climáticas sob uma óptica negacionista. Como de praxe, o documento é liderado por Luiz Carlos Molion e, dentre as demais assinaturas, aparece a de Ricardo Felício.
Sem pretender entrar em cada detalhe do documento, me proponho aqui a analisar a parte dele que se propõe a tratar a questão sob uma perspectiva científica. Adianto que o que acontece é justamente o contrário: a Carta desfia um rosário de afirmações – sem citar fontes ou citando blogs da Internet – que não se sustentam em evidências ou que, em sua maioria, vão abertamente contra as evidências disponíveis. Os contrapontos que trarei aqui são todos devidamente baseados na literatura científica com revisão, principalmente a partir de periódicos científicos do mais elevado prestígio, como Nature e Science.
O grupo alega que “não há evidências físicas da influência humana no clima global”, o que destoa abertamente de todo o conhecimento acumulado na área. A comunidade científica examinou à exaustão todas as possíveis influências naturais sobre o clima, da atividade solar ao vulcanismo, passando pelas mudanças na órbita da Terra. A conclusão de todos os estudos é que nenhum desses fatores tem contribuição importante para o aquecimento observado do sistema climático. Ao contrário, a combinação dos efeitos naturais mais provavelmente teria levado o planeta, nas últimas décadas, a um resfriamento sutil.
A questão aqui é de física básica. Só pode haver mudanças consistentes na temperatura média de um sistema se houver alguma diferença entre a energia que entra e a energia que sai. Desde o início do período industrial até hoje, as emissões humanas de gases de efeito estufa produziram um desequilíbrio energético em escala planetária ao aprisionar parte do calor irradiado pela Terra que deveria voltar ao espaço. Hoje em dia, a quantidade de calor que fica preso na nossa atmosfera a cada minuto equivale à energia da explosão de 1.112 bombas de Hiroshima, tornando ridícula a afirmação dos negacionistas de que a influência humana sobre o clima se limitaria “às áreas urbanas e seus entornos”.
O texto dos negacionistas também mente sobre o conhecimento estabelecido sobre o clima do passado. A começar pelo sofisma de que “o clima está sempre em mudança”, equivalente a dizer que “pessoas sempre morrem um dia” é um comentário pertinente diante de um assassinato.
Por exemplo, é falsa a afirmação sobre as condições climáticas no chamado Holoceno Médio. Ao contrário do que dizem os negacionistas (“há 6.000-8.000 anos, as temperaturas médias chegaram a ser 2°C a 3°C superiores às atuais, enquanto os níveis do mar atingiram até 3 metros acima dos atuais”), artigos publicados na literatura científica sugerem que as temperaturas médias globais dificilmente estiveram mais do que 1°C acima do período pré-industrial e que mesmo antes da quebra sucessiva de recordes de temperatura entre 2014 e 2016 o Planeta já estava mais quente do que em pelo menos 85% do tempo nos 11.700 anos que definem o Holoceno. Mais grave, a literatura científica indica que os oceanos estavam na realidade em níveis mais baixos há 6.000-8.000 anos, justamente o contrário do que foi afirmado.
Também ao contrário do que diz a carta dos negacionistas, períodos recentes, como a Idade Média, não foram mais quentes que o presente. Embora na Europa esse intervalo de tempo tenha sido marcado por temperaturas relativamente mais altas do que em outros momentos históricos, do ponto de vista global a realidade era outra. O Planeta estava, em média, mais de 0,2°C mais frio do que a média de 1961 a 1990.
A mentira se completa quando os negacionistas citam os chamados interglaciais, os períodos quentes que se alternaram nas últimas centenas de milhares de anos com os glaciais, popularmente conhecidos como “eras do gelo”. Molion e trupe falam de temperaturas 6°C a 10°C acima das atuais. Tais temperaturas não ocorreram em nenhum momento dos últimos 800 mil anos (na verdade, provavelmente nem nos últimos 55 milhões de anos). A literatura científica identifica 11 interglaciais ocorridos nos últimos 800 mil anos. Destes, dois teriam sido mais intensos (há 125 mil e há 400 mil anos), mas neles a temperatura teria estado somente 1°C a 2°C acima dos valores pré-industriais, ou seja, no máximo 1°C acima dos valores atuais. Há 125 mil anos, essa elevação adicional de 1°C bastou para causar uma subida de 10 metros no nível do mar devido ao derretimento do gelo da Antártida e da Groenlândia. Essa é uma das razões para os cientistas terem fixado o limite de 2°C como o limiar da catástrofe para a humanidade.
Outra leviandade é a afirmação de que o aquecimento global causado por atividades humanas seria apenas uma “hipótese” e que “ocorreram temperaturas altas com baixas concentrações de dióxido de carbono (CO2) e vice-versa”.
As evidências científicas mostram que aconteceu justamente o contrário. Isto é, em diferentes escalas de tempo a concentração atmosférica de CO2 e de outros Gases de Efeito Estufa é altamente correlacionada com a temperatura média global. Por exemplo, nos últimos 800 mil anos, período para o qual se tem um excelente registro do clima no passado, gravado no gelo da Antártida, temperatura e concentração de dióxido de carbono sempre aumentaram juntos e diminuíram juntos.
O consenso científico é que os dados obtidos no gelo antártico não apenas demonstram uma influência decisiva do CO2 sobre a temperatura global, como sugerem um importante mecanismo de retroalimentação, ou feedback, em que aquecimento levava à liberação de CO2 e vice-versa. Esse mecanismo de retroalimentação fazia com que pequenas perturbações pudessem levar a uma evolução não-linear do sistema climático terrestre, ao ponto de levá-lo a estados tão distintos quanto os glaciais e os interglaciais. Essa “violenta delicadeza” dos feedbacks climáticos é algo que deveria nos fazer refletir sobre quão grandes podem ser as consequências de uma perturbação no sistema do tamanho da que estamos produzindo, ao injetar uma quantidade de CO2 tão grande na atmosfera que fez sua concentração aumentar quase 50% em apenas dois séculos.
Essa correlação entre CO2 e temperatura também se repete em escalas mais longas, de milhões de anos, ao ponto de alguns dos cientistas mais destacados se referirem literalmente à concentração deste gás como o “principal botão de controle do clima da Terra”.
Reduzir as emissões é imperativo e urgente
Sendo tão abertamente falsas as premissas, as conclusões da carta não poderiam ser menos deslocadas da realidade. O que os negacionistas propõem nada mais é do que uma irresponsável continuidade do modelo econômico predatório de hoje em dia, intensivo em carbono. Afirmam que “vários países de peso” têm contestado as políticas globais de redução de emissões, o que mais uma mentira: apenas os EUA de Donald Trump manifestaram que sairiam do Acordo de Paris, ratificado por 185 países (inclusive os EUA).
Os últimos 5 anos (de 2014 a 2018) foram os 5 anos mais quentes de todo o registro histórico, iniciado em 1880. Entre os 10 mais quentes, apenas 1998 não pertence ao Século 21. E, nesse contexto, os cientistas sérios não têm dúvidas: o Planeta está aquecendo, as causas estão relacionadas a atividades humanas, especialmente as que sustentam o modo de vida dos mais ricos, e as consequências são e serão muito graves, sobretudo para os mais pobres.
O consenso sobre o tema, reconhecido no Acordo de Paris de 2015, é que para permanecermos em condições minimamente seguras, precisaríamos manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C, sendo que acima de 2°C o risco de catástrofes cresce enormemente. Acima disso, a tendência é que haja uma quantidade muito grande de eventos extremos, quebras de safra agrícola, desabastecimento de água e outras mazelas.
E aí vem a questão mais grave. Um estudo recente do painel de cientistas do clima organizado pela ONU, o IPCC, mostrou que, para termos chances razoáveis de respeitar o limite de 1,5°C é necessário cortar metade das emissões de Gases de Efeito Estufa até 2030.
Isso significa que necessitamos de uma enorme mudança no modo de vida em nossa sociedade. Vamos precisar de novas fontes de energia, como a energia solar residencial, para abandonar as termelétricas a carvão e gás sem cair em falsas alternativas. Vamos precisar mudar radicalmente o sistema de transportes, apostando na combinação de transporte de massas eletrificado e locomoção ativa para superar o automóvel individual. Vamos precisar inclusive mudar a alimentação, priorizando gêneros de origem vegetal produzidos pela agricultura familiar através da agroecologia. Vamos precisar, sobretudo, colocar um ponto final na farra consumista de uma pequeníssima minoria de muito ricos, cujo modo de vida é insustentável em todos os aspectos e leva a emissões muito maiores do que as das pessoas mais pobres. E não há como fazer essas mudanças apenas no plano das escolhas individuais, sem políticas públicas. Em tais condições, dirigir-se a tomadores de decisão e formuladores de políticas com documentos repletos de mentiras e pseudociência é não apenas irresponsável. É coisa de patifes.