Caetano Scannavino || empreendedor social, coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, e integrante do GT Infraestrutura.
A usina de Tucuruí, no Pará, foi inaugurada nos anos 80 para gerar energia ao país e à indústria do alumínio. As comunidades do entorno, além de conviverem com os impactos do empreendimento, só tiveram acesso à luz elétrica vinte e poucos anos depois. Os paraenses seguem pagando a maior tarifa da federação, apesar do estado ser o 2º maior produtor de energia do Brasil. E seguimos exportando alumínio para importar bicicletas de alumínio.
Em geral, a visão nacional de desenvolvimento ainda nos remete a grandes projetos de infraestrutura na Amazônia, sejam minerários, hidrelétricos ou viários. Planejados para atender o resto do país, nem sempre se convertem devidamente em benefícios para os quase 25 milhões de brasileiros que vivem no bioma. Se comparada com outras regiões, há um abismo infra-estrutural gigantesco no acesso dos amazônidas às políticas sociais e aos serviços básicos de saúde, educação, energia, transportes, comunicações e saneamento.
A luz elétrica já alcançou 98% dos lares brasileiros, mas é na Amazônia onde se encontra grande parte dos excluídos. Isso traz um limitante para qualidade de vida não apenas por causa da iluminação, como também pelas telecomunicações, agregação de valor nas cadeias produtivas, conservação de alimentos e medicamentos.
Com a Covid-19, as mazelas sociais amazônicas ficaram ainda mais escancaradas quando vimos que São Paulo entrou na pandemia com um respirador para cada 2,4 mil habitantes, enquanto em Macapá/AP havia um aparelho para cada 9 mil, ou em Santarém/PA, um para cada 20 mil. Como agravante, além da insuficiência de respiradores, vimos locais colapsados também pela falta de oxigênio para abastecê-los.
Enquanto mais de 90% da população do Sudeste têm acesso à rede de água, esse número cai para apenas 57% na região Norte, onde somente 10,5% dos seus moradores têm esgoto coletado (Trata Brasil/2020). É um paradoxo que na maior bacia de água doce do mundo, em cima do maior aquífero do Planeta, com reservas que poderiam abastecer a humanidade por 250 anos, os ribeirinhos sofram de estresse hídrico, dependentes das águas contaminadas dos rios. É a origem de boa parte das doenças e maior causa da mortalidade infantil, decorrente das diarreias e da desidratação.
Sem querer desmerecer as devidas preocupações com as florestas, com o desmatamento, o fato é que não basta só o ambiental sem respostas ao social. Segundo a pesquisa Decisores da Amazônia (Mundo Que Queremos / Clima e Sociedade), a saúde é vista como o principal problema para três em cada quatro moradores da Amazônia Legal, entendida como a área mais carente em infraestrutura nos municípios da região. E num território onde municípios têm o tamanho de países – dos dez mais extensos do mundo, seis estão na Amazônia – o quadro de exclusão é ainda mais agudo nas zonas rurais, com populações dispersas, esparsas, de difícil acesso, e altos custos logísticos.
Como as políticas básicas são de competência dos governos locais, a conta jamais fechará se a equação continuar simplificada ao número de habitantes versus receitas. Não são fáceis os desafios de uma Prefeitura como a de Altamira/PA para distribuir a merenda escolar seguindo o padrão custo-aluno ou implementar a atenção básica via tabela SUS junto aos seus cidadãos espalhados em uma área maior que a Grécia ou Portugal.
“Para isso, estratégias diferenciadas que atendam às peculiaridades amazônicas devem ser priorizadas na formulação de políticas para região, adaptadas e includentes, assim como o estímulo às alianças, à participação local e ao desenvolvimento de tecnologias sociais apropriadas, demonstrativas e escaláveis para impactar o território como um todo.”
Já existem algumas iniciativas neste sentido. Temos visto melhores resultados quando tomadores de decisão adotam uma postura mais proativa de cooperação e soma de esforços mobilizando comunidades, associações de bairros, academia, organizações do terceiro setor e programas de responsabilidade empresarial.
Um bom exemplo vem do Tapajós, com o modelo de saúde básica através do barco-hospital Abaré tendo virado política pública nacional. A experiência implementada pela ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA), junto com as Prefeituras locais e representações comunitárias, inspirou a Estratégia de Saúde da Família Fluvial. Lançada há pouco mais de 10 anos pelo Ministério da Saúde, tem apoiado os municípios da Amazônia e do Pantanal, contando hoje com mais de 60 embarcações de atendimento (UBSF) à ribeirinhos de zonas remotas.
Em meio a pandemia, vale destacar também o trabalho da ONG Expedicionários da Saúde, com as Unidades de Atenção Primária Indígena no apoio aos DSEIs (Distrito Sanitário Especial Indígena). Desenhadas para o enfrentamento das síndromes gripais e da Covid-19, as UAPIs contam com uma configuração de equipamentos que permite inclusive o tratamento de oxigenoterapia nas próprias aldeias, reduzindo assim situações de agravos e remoções para as cidades.
No campo do saneamento, seja através do PSA ou de outras organizações afins, tem-se inovado em tecnologias de captação de chuvas, sistemas de abastecimento e tratamento da água, movidos a energia solar, sem necessidade de diesel ou baterias, o que facilita a sustentação pelos próprios moradores.
Empreender em polos isolados e longínquos demanda soluções que tenham resolutividade, garantias de manutenção, e gerem autonomia comunitária. Se por um lado as coisas demoram mais para chegar na Amazônia, que quando cheguem, sejam o que há de mais avançado. Por outro lado, para que se constituam em tecnologias de ponta, na ponta, é preciso desenvolvê-las junto com a comunidade, de forma adequada ao universo cultural e capacidades locais para sua boa gestão. Caso contrário, corre-se o risco de aumentar a manada de elefantes brancos dos tantos empreendimentos que, mesmo bem-intencionados, hoje se encontram abandonados no meio do mato.
Por isso a importância dos movimentos de base (indígenas, quilombolas, agroextrativistas), das organizações não-governamentais, dos projetos de extensão e das parcerias público-privadas que atuam na ponta com metodologias participativas de cocriação e empoderamento comunitário.
“Nesse sentido, modelos de energias renováveis para eletrificação rural, de telecentros de acesso a internet para inclusão digital, de processamento de alimentos, de beneficiamento de produtos florestais para agregação de valor, entre outras infraestruturas para o bem-viver, de menor custo, maior benefício, estão prontas para ganhar escala, sobretudo via políticas públicas.”
Nem só de retrocessos e jabutis vive Brasília. Há luz, literalmente, em alguns projetos que tramitam no Congresso, dentre eles, o PL 4248/2020 (Dep. Airton Faleiro), que dispõe sobre a universalização do acesso à energia na Amazônia Legal. Se a previsão do Governo Federal é alcançar todos os domicílios até 2030, o PL propõe antecipar a meta para 2023 de ao menos uma instalação elétrica coletiva em comunidades remotas, a partir de fontes renováveis, viabilizando serviços de iluminação básica, telecomunicações e refrigeração – importante em tempos de pandemia, com atenção à telemedicina, câmaras frias para vacinas, e bombeamento de água limpa.
Antes de se falar em proposições legislativas para liberar soja ou garimpos em Terras Indígenas, nossos tomadores de decisão deveriam pensar em alavancar atividades associadas às vocações da região, a começar pelas iniciativas de agrofloresta e bioeconomia das comunidades tradicionais. Muitas delas premiadas, dos Suruí aos Ashaninka, do Xingu ao Negro, hoje estão abastecendo tanto os mercados locais como os de fora, a partir da produção de orgânicos, beneficiamento de frutas, casas de mel, miniusinas extratoras de óleos, etc.
Sem precisar reinventar a roda, são contribuições concretas dos povos tradicionais para nortear políticas de segurança alimentar, geração de renda, valorização da cultura local e manutenção da floresta em pé. Nesse sentido, vale atenção ao PL 880/2021 (Sen. Jaques Wagner), baseado em uma experiência no Amazonas ganhadora do Prêmio Innovare 2020, que institui a “Política Nacional de Promoção da Alimentação e dos Produtos da Sociobiodiversidade de Povos e Comunidades Tradicionais”. Cria cotas mínimas de produtos indígenas e quilombolas na merenda escolar, insere cardápios típicos nos estabelecimentos públicos, propõe ações de crédito, assistência técnica, extensão rural, e incentivos ao desenvolvimento de sistemas agroecológicos nos territórios, entre outras medidas.
Já derrubamos duas Alemanhas de floresta amazônica, para ocupar 63% das áreas devastadas com pastagens de baixíssima produtividade e abandonar outros 23% (MapBiomas). Em plena emergência climática, num bioma que começa a emitir mais CO2 do que absorver (Nature), não tem como fugir de uma estratégia de desmatamento zero. Que venham junto políticas robustas de eficiência agrícola, de restauração florestal, de bioeconomia, de tecnologias baseadas em conhecimentos da natureza – se é para fazer valer as benesses fiscais da Zona Franca de Manaus, porque não torná-la por exemplo um Vale do Silício da Floresta, um centro mundial da biodiversidade?
Não deveria ser pedir muito. Caminhos existem, soluções também.
O desafio de conciliar conservação, inclusão social, crescimento econômico e o desenvolvimento da Amazônia permanece. Só não pode mais ser visto apenas de forma unidirecional, para o outro lado da nação, insistindo num modelo que deu errado em tempos sem mais tempo para errar.