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O movimento global de justiça ambiental e o EJAtlas

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Nossa missão é semear informação ambiental de qualidade.

Joan Martínez Alier || Catedrático de Teoria Econômica da UAB. Colaborador de SinPermiso pesquisador pioneiro no campo da economia ecológica

Joan Martínez Alier – Foto: Javier Cámara

O Atlas de Justiça Ambiental (EJAtlas) é um esforço coletivo de conhecer e visibilizar as muitas ameaças e danos socioambientais contra as comunidades e os territórios. Mapeamos de maneira participativa os conflitos socioambientais, quais projetos de investimento os causam, quem são os protagonistas, com as formas de resistência e seus resultados. Temos construído um arquivo na web (https://www.ejatlas.org) que começou em 2012 e em 2020 chegou a 3040 entradas e segue crescendo. Serve para fazer estudos de Ecologia Política Comparada (artigos, teses, livros) e para ajudar aos ativistas que constituem o grande movimento global de justiça ambiental. Minha opinião é que ao construirmos coletivamente o EJAtlas no ICTA (Institut de Ciència i Tecnologia Ambientals) da UAB (Universidade Autónoma de Barcelona) nos vemos como auxiliares e provedores de materiais para esse movimento desde a retaguarda (como diria Boaventura Sousa Santos).

O Atlas de Justiça Ambiental (https://www.ejatlas.org), co-dirigido por Leah Temper e por mim, coordenado por Daniela Del Bene, está financiado por una subvenção do European Research Council ao projeto “EnvJustice” no ICTA UAB (www.envjustice.org). Atingiu mais de três mil fichas em Janeiro de 2020 permitindo avanços no estudo da Ecologia Política Comparada. Iniciou seu caminho público em 2014 com 920 casos. Mais de cem pessoas (remuneradas ou voluntárias) contribuíram com dossiês ao EJAtlas que, antes de serem publicados, são verificados cuidadosamente.

Essas três mil fichas são uma amostra bastante grande aportada por universitários ou ativistas dentro de um total de conflitos socioambientais que ninguém conhece qual possa ser, dezenas de milhares ao redor do mundo. As fichas do Atlas estão com acesso aberto e cada uma tem 5 ou 6 páginas com uma descrição do conflito, as fontes de informação e diversas variáveis codificadas (os impactos visíveis ou potenciais do projeto controvertido, os atores sociais, suas formas de mobilização, os resultados do conflito, e alguns links a fotos e vídeos). O EJAtlas classifica os conflitos em dez categorias principais: energia nuclear, biomassa e terras, combustíveis fósseis e mudança climática, mineração, infraestruturas, indústria, conservação da biodiversidade, água, resíduos, turismo. Dentro de cada uma dessas categorias há numerosas categorias secundárias.

Pode-se fazer análises por países ou regiões, como Raquel Neyra na sua tese doutoral de 2019 na Universidade de Zaragoza sobre mais de 80 conflitos ambientais no Peru. A análise detalhada do metabolismo social de países andinos e sua relação com 300 conflitos ambientais, de Mario A. Pérez Rincón e outros. Ou o artigo de Lucrecia Wagner e Mariana Walter com casos do EJAtlas apresentado numa oficina sobre indústrias extrativas em Oxford em Dezembro de 2019 com o título: “Mining Struggles in Argentina: Analysis of a Successful Story of Mobilization”, ou o de Emiliano Terán sobre conflitos socioambientais na Venezuela tanto al Norte como al Sul do Orinoco.

Há um artigo quase finalizado de Ksenija Hanacek e meu analisando 50 conflitos no Ártico que é uma nova fronteira da extração de “commodities” desde Alaska e o Canadá até a Sibéria oriental. Ou os artigos de Brototi Roy e de Juan Liu com panorâmicas de conflitos ambientais na Índia e na China. Também fazemos análises transversais ao redor do mundo sobre a mineração e a fundição de cobre, a mineração de areias para a construção ou de areias para metais (ilmenita para titânio), plantações de óleo de palma ou de eucaliptos, barragens hidroelétricas, incineradoras (com muitos casos na China) e outros conflitos por resíduos urbanos, centrais elétricas de carvão, fracking de gás, mineração de urânio ou centrais nucleares, turbinas eólicas e outros assuntos.

O EJAtlas se usa no ativismo ambiental e também no jornalismo, a pesquisa acadêmica e o ensino universitário em ecologia política e outras ciências socioambientais como a economia ecológica, a história ambiental, a sociologia ambiental, a ecologia industrial; na geografia humana e na cartografia crítica; no estudo das relações internacionais. Também pode ser usado na economia empresarial. Por exemplo, um recente artigo de Rajiv Maher no Business and Human Rights Journal destaca que os rankings de empresas para informação de investidores segundo seu grau de respeito pelos direitos humanos e o ambiente natural contrastam com as informações do EJAtlas. Esses rankings devem, então, serem questionados e reelaborados à luz dos fatos que o EJAtlas torna visíveis.

Temos publicado um mapa com o título Blockadia (os movimentos locais para deixar em terra os combustíveis fósseis como a iniciativa Yasuní ITT no Equador e Ende Gelände na Alemanha) e outros mapas de conflitos da companhia Vale, da Chevron, da Pan American Silver. Temos contribuído (com Sara Mingorría) a mapear e explicar os conflitos registrados pela rede Stay Grounded contra novos campos de aviação. Outro mapa especial recolhe conflitos que envolvem populações românias no Sudeste da Europa.

Analisamos casos de mulheres ativistas assassinadas (dezenas de “Bertas Cáceres”) recolhidos no EJAtlas. Com Grettel Navas publicamos o capítulo “A repressão contra o movimento global de Justiça Ambiental: algumas ecologistas assassinadas” num livro da CLACSO de 2017. O arquivo de fichas do EJAtlas contêm também casos de ecologismo operário e, evidentemente, muitos casos de ecologismo camponês; da mesma forma que analisamos a alta percentagem de participação indígena em conflitos ambientais e suas causas, e a eventual presença de grupos religiosos (católicos na América do Sul e nas Filipinas, budistas na Ásia). Os conflitos de “conservação biológica militarizada” na Índia e na África podem ser comparados com casos de “conservação convivial”

Usando a função de Filtro disponível para qualquer leitor comprovamos (nos 3000 casos do EJAtlas) que em 375 se informa a morte de um ou mais defensores ambientais (12 por cento dos casos). Em quase 500 casos se informa um êxito na justiça ambiental, conflitos onde se consegue, de forma geral que os projetos sejam cancelados. Se não houvesse alguns sucessos, não poderíamos falar de um movimento global de justiça ambiental. Nem todos os países se comportam igual. No México, de 109 conflitos informados (até Janeiro de 2020), a percentagem de sucessos em obter justiça ambiental é similar à média mundial, mas os casos com um ou mais ativistas falecidos são 22, isto é, 20 por cento. No Peru, de 93 casos informados, 19 são classificados de êxito da justiça ambiental, e em 27 há um ou mais ativistas falecidos (muito acima da média mundial). (Ver análises e enumeração dos falecidos no Peru em https://www.halacsolcha.org/index.php/halac/article/view/392. Artigo de Raquel Neyra, Violência e Extrativismo no Peru contemporâneo, HALAC 9, 2019).

O desfalecimento de Atlas – Arte: Ley Ussing Martin

Existe um movimento global de justiça ambiental?

Usamos aqui “movimento social” no mesmo sentido com que se falava do movimento operário na Europa até 1914, ou dos movimentos pacifistas no mundo como o movimento estudantil nos Estados Unidos contra a Guerra de Vietnã na década de 1960; ou os movimentos campesinos ou agraristas na América Latina desde Zapata em 1910 no México; ou o triunfante movimento anticolonial depois de 1945 particularmente na África; ou o movimento de Direitos Civis nos Estados Unidos de Martin Luther King e outros. E, evidentemente, o crescente e exitoso movimento feminista dos últimos cem anos. Tais movimentos sociais não parecem gerar uma única organização. A cronologia vai da denúncia dos agravos à apresentação de reclamações, e daí para a formação dos movimentos. Primeiro se pedia a terra em diferentes lugares e momentos, logo chegaram consignas coletivas como “a terra para quem a trabalha” e ”terra e liberdade” viajando pelo mundo em diversas línguas, e tudo isso aconteceu muito antes que se fundara a Via Campesina em finais do Século 20. Os dispersos coletivos operários fizeram greves e boicotes, arremetendo contra os fura-greves, antes que essas palavras se difundissem e que se formassem os sindicatos.

A mesma coisa acontece no movimento ambientalista: se divulgam consignas, como na América Latina: “a água vale mais do que o ouro”, se escrevem em cartazes que são levados para as manifestações, se pintam em murais, se imprimem em camisetas. O slogan não quer dizer que, em dinheiro, um quilo de ouro custe menos do que um quilo de água; mas que a água tem valor para a subsistência humana e para a própria natureza que não são acolhidos na valoração da produção de riqueza. Nos conflitos do EJAtlas vemos como se mostram diferentes linguagens de valoração. A linguagem da compensação monetária dos danos é somente uma das possíveis linguagens e, além disso, não acontece na prática, como sabemos pelos famosos casos como o de Chevron-Texaco no Equador ou da Shell no Delta do Níger. Para entender os conflitos socioambientais há que se adotar uma perspectiva multi-criteriosa e há que se perguntar quem tem o poder para impor ou excluir determinadas linguagens de valoração.

No EJAtlas estamos colecionando não somente fichas com descrições de conflitos mas também expressões culturais em línguas diferentes. Pensem na América Latina em slogans como “sem milho não há país” (no México) ou “paremos de fumigar” (na Argentina), ou “as plantações de árvores não são florestas” ou “desertos verdes” contra plantações de eucaliptos no Brasil, ou o nome de Rios Vivos na Colômbia para uma rede contra as hidroelétricas (similar ao MAB no Brasil ou MAPDER no México). Vejam como a expressão “zona de sacrifício” tem se estendido pelo continente, adotada possivelmente do livro de Steve Lerner nos Estados Unidos (2010) por sua vez nascido do movimento de justiça ambiental nesse país. Ou o neologismo zadiste na França, originado há poucos anos na “zone à defendre” contra o projeto do aeroporto de Nantes. Ou a expressão na China que se traduz ao inglês como “Cancer Village” com ecos da “Cancer Alley” na Louisiana.

Não há aqui espaço para entrar em detalhes, mas ouçam, por exemplo, a canção “Poramboke” de T. M. Krishna nascida em Ennore Creek ao Norte de Chennai na Índia. Em poucos versos resume esse conflito sobre a destruição de manguezais e da pesca num estuário pela terrível contaminação de centrais elétricas de carvão. E canta que essa terra e essa água eram bens comunais, era um Poramboke. A palavra em tâmil hoje se emprega mal, como terra de ninguém, terra inútil. Não é assim, canta T. M. Krishna: Poramboke são os comuns.

No EJAtlas temos recopilado centenas de fotos de cartazes, canções, documentários, murais de todo o mundo. Fazendo uma análise das redes (network analysis) tentamos mostrar que não só há slogans compartilhados, mas também, às vezes, conexões entre protagonistas sociais de muitos desses conflitos. Nos conflitos socioambientais, primeiro nasce a consciência de agravos e há reclamações (“folhas de reclamações” como se diz na linguagem sindical latino-americana), logo há manifestações, cartazes, criminalização de ativistas, etc. Trás o movimento talvez apareça uma organização ou várias com nome e siglas. Mas, para que exista um movimento não faz falta uma organização. É erróneo buscar a presença do movimento global de justiça ambiental nos cambiantes nomes das organizações mais do que nas ações locais com suas formas diversas e nas suas expressões culturais.

Por que há um movimento pela justiça ambiental?

No projeto EnvJustice somos materialistas. Buscamos as causas dos conflitos de mineração, barragens, infraestruturas públicas, industriais, extração de biomassa e de combustíveis fósseis, ou destinação de resíduos, em suas causas materiais, a saber, o crescimento e mudanças no metabolismo social. Esses fluxos de energia e materiais são concomitantes com o crescimento econômico e a acumulação de capital. O crescimento econômico aparece junto com o aumento do metabolismo social, quer dizer os fluxos de energia e materiais. Concluímos que a economia industrial capitalista não é circular, mas entrópica, cada vez mais entrópica. Está por acabar a transição da economia mundial na Ásia do Sul e África para o predomínio dos combustíveis fósseis que começou na Europa faz duzentos anos. A economia industrial usa combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás), os queima como fontes de energia que se dissipa e, além disso, produz resíduos como o dióxido de carbono em quantidades excessivas aumentando o Efeito Estufa. A curva de Keeling mede a concentração de dióxido de carbono na atmosfera e segue sua marcha imperturbável desde as 320 ppm (partes por milhão) na década de 1950 a 410 ppm agora, a 450 ppm até 2050 e, provavelmente, 500 ppm no 3000. Para então, o decrescimento da população humana e da economia mundial, os movimentos de Blockadia e as mudanças tecnológicas talvez revertam a tendência.

A economia não só consome os combustíveis fósseis, também esgota os “bens fundos” que, em principio, são permanentes: as pesqueiras e a fertilidade dos solos, as grandes florestas e a biodiversidade, o ciclo natural da água (que se converte num ciclo hidro-social). O certo é que a economia industrial tem um apetite voraz de novos fornecimentos de materiais e de energia que vêm das fronteiras da extração. E deposita os resíduos na atmosfera, nos oceanos, nos rios e nos solos rurais ou urbanos. Inclusive uma economia industrial sem crescimento necessitaria fornecimentos frescos de materiais e energia porque a energia se dissipa e os materiais se reciclam somente numa pequena parte. Os dados (de Willi Haas e outros) indicam que a taxa de reciclagem dos insumos que entram na economia mundial é inferior a 6%.

A economia “neoliberal” triunfa desde a década de 1970 em grande parte do mundo. Penso que esse fundamentalismo de mercado é um inimigo do meio ambiente. Mas, suponhamos que a economia mundial não fosse neoliberal, mas uma economia keynesiana socialdemocrata ou uma economia no estilo russo anterior a 1990. Ou suponhamos que o capitalismo de estado chino triunfe em todo lugar. Não por isso se reduziriam os conflitos ambientais causados pelo crescimento e as mudanças do metabolismo social da economia industrial, conflitos que registramos no EJAtlas e dos quais nasce um movimento mundial de justiça ambiental.

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