Nota do Cimi: lamentável morte do indigenista Rieli Franciscato é fruto do descaso com proteção a isolados
O Conselho Indigenista Missionário lamenta a morte de Rieli Franciscato, reconhecido por sua dedicação e compromisso com a defesa intransigente da vida e do futuro dos povos indígenas.
“O Brasil que eu quero para o futuro é que isso aqui continue sendo preservado, não só para os índios, mas para toda a população do entorno” (Rieli Franciscato)
O Conselho Indigenista Missionário – Cimi lamenta a morte do servidor público da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Sr. Rieli Franciscato, e se solidariza com os seus familiares, amigos e colegas de trabalho.
Rieli, de 56 anos, era um indigenista experiente, com mais de trinta anos de atuação na FUNAI, reconhecido por sua dedicação e compromisso com a defesa intransigente da vida e do futuro dos povos indígenas isolados. Ele era chefe da Frente de Proteção Etnoambiental próxima ao território do povo Uru-Eu-Wau-Wau, na região de Seringueiras, Estado de Rondônia. Ao ser informado da presença de um grupo de índios isolados do Cautário em Seringueiras, Rieli se dirigiu ao local para evitar o conflito entre indígenas e não indígenas, sendo flechado quando se aproximou.
Conhecidos como “Isolados do Cautário” em referência ao nome de um rio local, estes indígenas vivem da caça e pesca dentro da Terra Indígena (TI) Uru-Eu-Wau-Wau. O grupo indígena já havia aparecido na zona rural de Seringueiras no mês de Junho. A flecha que atingiu mortalmente o conceituado indigenista denuncia, de forma traumática, a violência praticada contra esses povos, a invasão dos seus territórios e a criminosa omissão do Estado.
O território Uru-Eu-Wau-Wau, desde a construção da BR-364, vem sendo constantemente invadido para a exploração da caça, pesca e madeira e, mais recentemente, também por grileiros que têm estabelecido lotes dentro da terra demarcada – situação que já é do conhecimento das autoridades. Esses grupos isolados são sobreviventes da política genocida de contato, e de desenvolvimento do Estado brasileiro desde a década de 1970. O Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil (Polonoroeste), financiado pelo Banco Mundial, construiu estradas e abriu os territórios indígenas para um brutal processo de colonização e de implantação de projetos e econômicos, levando ao extermínio de diversos povos. Apesar da demarcação, em 1991, da TI Uru-Eu-Wau-Wau, onde vivem os povos recém contatados Amondawa, Jupaú e Uru-Eu-Wau-Wau, o processo de invasão, exploração e extermínio dos indígenas na região não cessou.
A ação que resultou na lamentável morte de Rieli Franciscato revela uma atitude desesperada dos indígenas isolados em defesa de seu território. Sua agressividade se dá em decorrência de violências de que vem sendo vítimas ao longo dos anos e, muito provavelmente, também é motivada por fatos ocorridos recentemente.
O Instituto Socioambiental (ISA), utilizando dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), constata que o desmatamento cresceu 113% em 2019 nas terras indígenas com presença de povos isolados em relação a 2018. Em Abril de 2020, foi assassinado o indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau, que atuava na vigilância da TI Uru-Eu-Wau-Wau e era ameaçado por invasores. Não houve punição para os assassinos.
O atual governo federal, a partir do Presidente da República, tem disseminado uma política de preconceito, ódio e violência contra os povos indígenas no Brasil, ao afirmar, entre outras coisas, que não demarcará “nem um milímetro de terra indígena”; que se deve abrir os territórios para exploração; que os indígenas devem ser integrados e “viver como seres humanos”. Seguindo a prática genocida, a FUNAI foi entregue aos ruralistas, conhecidos inimigos dos índios; os servidores passaram a ser perseguidos, as bases de proteção e fiscalização do órgão foram desarticuladas e vêm sendo alvos de ataques, enquanto o departamento de isolados foi entregue a pastores fundamentalistas.
A proposição do Projeto de Lei 191, que prevê a exploração dos territórios indígenas, e a Instrução Normativa 09, que permite a certificação de fazendas dentro dos territórios indígenas, vêm com o objetivo de legalizar o esbulho territorial e confrontar a Constituição Federal, que prevê o usufruto exclusivo destes territórios pelos povos indígenas. Tais ações acirram ainda mais os conflitos já existentes.
Hoje, no Brasil, existem mais de cem povos indígenas em situação de isolamento voluntário, principalmente na região amazônica. Portanto, é de extrema importância a proteção desses territórios, não permitindo o contato e a exploração, principalmente nesse período de pandemia do coronavírus. Salientamos que o governo Bolsonaro vai na direção contrária da política de proteção aos povos isolados em discurso e prática, precarizando as Frentes de Proteção e incitando a população não indígena contra esses povos.
O Cimi reconhece a importância da existência e resistência desses povos e a sua opção em viver de forma autônoma na floresta; por outro lado, o aparecimento deles em várias localidades nos preocupa, pois pode significar que estão sofrendo pressão devido à invasão dos seus territórios e à diminuição dos alimentos que garantem sua sobrevivência.
Exigimos do Governo Federal o devido respeito e proteção aos povos indígenas no Brasil, em especial àqueles que optaram por não ter contato com a sociedade não indígena. É inaceitável que o papel de proteção dos territórios indígenas fique por conta de uns poucos indigenistas, expondo suas vidas e atuando em precaríssimas condições.
Nesse momento de dor, é importante o reforço na estrutura material e humana da Frente de Proteção Uru-Eu-Wau-Wau e a adoção de medidas especiais de proteção imediatamente, como a presença ostensiva da Polícia Federal na região. Esse procedimento se faz necessário também para cumprir a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADPF 709, no início de Agosto, quanto à contenção das invasões nos territórios tradicionais.
Alertamos, ainda, para a ameaça de genocídio dos isolados do Cautário, motivado pelos interesses econômicos na Terra Indígena e pelo preconceito, utilizando como pretexto a morte do indigenista da FUNAI.
O Cimi reitera o pesar pela morte de Riele Franciscato e a solidariedade aos seus familiares. A melhor homenagem a ele é dar continuidade à sua luta na defesa dos direitos indígenas, do ambiente saudável e da vida.
Brasília, 11 de setembro de 2020
Conselho Indigenista Missionário