Samyra Crespo | Ambientalista. Ex-Presidenta do Jardim Botânico do Rio de Janeiro
Tenho certeza, aprende-se muito com o cinema. Sobre a natureza, sobre nós mesmos, nossas dores, misérias e amores.
Os filmes e documentários que tematizam o meio ambiente já têm uma história longa – produtores, roteiristas e cineastas vêm desde longa data nos revelando na tela as mil maneiras como destruímos nosso Planeta e criamos a maior crise ambiental da nossa curta história na Terra.
O primeiro grande festival de filmes sobre meio ambiente no Brasil foi o de Goiás Velho, cidade ribeirinha, linda e colonial da nossa Cora Coralina.
Uma mostra que começou pequena e adquiriu fama internacional: o FICA – Festival Internacional do Cinema Ambiental. Lá estive oficialmente uma vez, representando o Ministério do Meio Ambiente. Mas participei do Festival várias vezes no desdobramento FICA NO RIO – que a produtora Carla de Oliveira trazia na base do amor e sacrifício para o Rio. Sempre o mesmo drama dos escassos patrocínios. Mostrava os filmes premiados e os turbinava com debates que atraíam estudantes e simpatizantes da causa. Acho que o último FICA NO RIO aconteceu em 2015.
No rastro desse formato, recentemente, há três anos, firmou-se a Mostra ECOFalante, desta feita sediada em São Paulo, e conduzida pelo ambientalista Chico Guariba.
Mais ambiciosa e se valendo da tecnologia virtual a Mostra procurou levar filmes e documentários sobre meio ambiente e desenvolvimento a vários estados brasileiros, com acesso tanto em cinemas convencionais quanto em plataformas internéticas.
Este ano, devido à Pandemia, a Mostra EcoFalante ocorre durante um mês, até 22 de setembro, totalmente gratuita e totalmente virtual, com os tradicionais debates e entrevistas transformadas em lives.
Neste tipo de mostra domina o cinema-denúncia e a produção global nos confirma que em todos os quadrantes nossos problemas ambientais são os mesmos, agravados pela pobreza, pela ignorância e mediocridade dos líderes. Mas também surgem cada vez mais produções inspiradoras que mostram soluções tecnológicas, locais ou ações individuais que buscam fazer a diferença.
Cada vez mais a Mostra funciona também como um updating da comunidade ambientalista mundial, revelando a temperatura e pressão do movimento que promove a consciência ambiental – no rastro do que fez Al Gore no emblemático Uma Verdade Inconveniente, anos atrás.
Com 99 filmes e documentários de diversos países, a Mostra ofereceu este ano um cardápio variado e de grande qualidade – tanto no conteúdo quanto na forma, revelando novos cineastas e trazendo à baila novos temas – numa toada mais socioambientalista e ecopolitica. Naturalmente, a denúncia do que ocorre na Amazônia está sempre presente assim como os discursos dramáticos que alertam sobre as mudanças climáticas e as suas já sentidas consequências. Mas tem muito mais.
Assisti até o momento seis produções que podem ser vistas tanto no streaming, via VIMEO ou Youtube – com datas e horários limitados – daí ser aconselhável consultar a programação buscando no google, o que é bem fácil. Além dos filmes ou documentários, pode-se também obter as entrevistas com os principais diretores. Muito interessante ouvir os cineastas e suas motivações.
Vou comentar aqui, e recomendar, três produções que considero imperdíveis: O Fim da Carne, PUSH, e Ladrões do Tempo.
No primeiro o foco é nos graves problemas gerados pelo consumo da carne e o impacto dos rebanhos no agravamento da crise climática tanto pelos desmatamentos para novos pastos, como pela ruminação que emite o gás metano para a atmosfera, passando pela “crueldade” do abate, do confinamento dos animais, etc.
A temática não é nova, mas este filme desiste de condenar o churrasco na lage e conclamar todo mundo a ser vegano, lançando um novo conceito: o flexitarianismo (flexetariam) – o indivíduo que migra conscientemente para um consumo menos intensivo em carnes, reconhecendo que mudar a dieta não é tarefa do dia para a noite. Vale a pena conferir.
O segundo trata do “direito à habitação ” e de como o mesmo vem sendo violado – sistematicamente – por um novo modo de produção de moradias (housing) que se tornou “produto” e subordinado inteiramente a um processo de financeirização versus commodities. Este sistema que implica em incorporadoras transnacionais, e investidores sem rosto, produz uma nova forma de gentrificação: tomam bairros como Notting Hill, antes de artistas e gente alternativa, fazem retrofits caros, aumentam os aluguéis e expulsam os antigos moradores. Como resultado temos prédios e condomínios inteiros praticamente desabitados, que estão nas bolsas e nos mercados especulativos: não são moradias, mas “investimentos”. A narradora do documentário é comissária da ONU e mostra com tintas fortes – didaticamente – como isso vem acontecendo em várias cidades do mundo – com o Harlem hispânico e negro nos em NYC nos EUA e com São Paulo.
O terceiro e último filme que recomendo muitíssimo é Ladrões do Tempo, onde de maneira competente e bem filmada, a documentarista mostra como o “self service” e o “do it yourself” via máquinas e internet – impôs aos consumidores (com enormes ganhos para quem produz e distribui bens e serviços) uma carga de trabalho absurda, sobrecarregando nosso já escasso tempo e extraindo uma “mais valia ” que nos passa despercebida.
Com dois efeitos colaterais: eliminação de empregos e perda dos contatos pessoais – uma vez que interagimos como robôs e máquinas.
Tudo em nome da “eficiência”. Mas a responsabilidade dessa eficiência foi jogada em nossos ombros sem contraparte.
Entremeado por falas do intelectual Robert Levine, que publicou o instigante livro Uma Geografia do Tempo, o documentário defende que nossa “falta de tempo” ou burnout são produzidos: um modo de produção e consumo do tempo – capitalista – que deve ser debatido e combatido, pois nos rouba o que temos de mais precioso: o tempo.
Considero quase obrigatório para militantes, professores, estudantes e simpatizantes da causa – uma boa garimpada na Mostra.
Aprendi muito, e sobretudo me dei conta de que se é verdade que muitos se dedicam a destruir, é também fato que há uma outra multidão: a dos descontentes e dos conscientes. É muito bom saber que temos aliados e que a consciência ampliada da grande e inadiável tarefa à frente está em todo lugar.