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GODOT DESFAZ O ENCANTO DO AUTOENGANO: A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

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Roberto P. Guimarães | Doutor em Ciência Política, exerceu as funções, entre outras, de Chefe de Análise Social e Política no Secretariado da ONU em Nova Iorque e Coordenador Técnico na Rio-92.

INTRODUÇÃO, QUANDO A REALIDADE DESMONTA O AUTOENGANO

“Em Esperando Godot”, Beckett revela o profundo mal-estar do “sofrimento do ser”, retratado na tragicomédia de Estragon e Vladimir esperando por algo para aliviar seu tédio. No entanto, em mais de uma maneira, a desesperança diante dos desafios ambientais do planeta fez com que todos nós passemos a ser representados por Estragon e Vladimir, lutando para passar o tempo da retórica acreditando no que muitos chamam de oximoro da sustentabilidade. Quanto mais falamos sobre Godot da sustentabilidade, menos provável é que se concretize. Com as crises de clima/saúde, Godot chegou para desmascarar o autoengano da sustentabilidade, garantindo que nada mude no desenvolvimento ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto.

Após 40 anos de avanços científicos, a crise climática não comove mais corações e mentes, devido ao equívoco de tratar a crise como se fosse um fenômeno natural de mudança. O citando o historiador e escritor Yuval Noah Haraki, “mesmo que a humanidade não fizesse nada, apesar de milhões de mortes, a humanidade sobreviveria à pandemia, enquanto… …a ausência de ação sobre o clima pode levar os seres humanos à extinção, algo muito mais devastador que o Covid”.

A responsabilidade científica, falha de comunicação e políticas públicas. (1) Raça, gênero e meio ambiente alcançaram relevância política com a agenda antiguerra, pró-liberdade e contracultura da década de 1960. Esta crise sistêmica ignora o processo de colapso (Jared Diamond). (2) Sabe identificar ameaças, perceber sua aproximação, comunicar-se com a sociedade, mas não oferece meios para superar a imobilidade.

Chega de “cobrir o sol com a peneira”. Existe probabilidade de 50% de aumento de 1,5 grau em 5 anos, e o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres alertou que o planeta tem um ponto “sem retorno”, não como uma “perspectiva”, mas como uma realidade de escassez ambiental e eventos extremos. A onda recente (acima de 45ºC) que provocou o verão mais quente da história na Europa (22/jul) estava prevista para acontecer somente em 2050. Deslocados por eventos climáticos já somam mais de 100 milhões de pessoas no mundo. Planeta alcançou em 2022 o umbral do não retorno: extinção massiva de recifes de coral e perda da biodiversidade global, desgelo do permafrost e das geleiras glacias, e mudanças radicais correntes marinas.

A crise climática nos transforma em Pascuenses, não há como se isolar ou não sofrer as consequências. Não foi toda a humanidade, mas uma minoria que adotou o Modo Imperial de Consumo. Práticas cotidianas e orientações de ação individual e coletiva que dependem da apropriação ilimitada de recursos, trabalho próximo à servidão (sem garantias/redes de apoio) e poder militar e tecnológico. 2020 10% foram responsáveis ​​por 1/2 crescimento das emissões; 5% mais ricos por 1/3 do aumento, enquanto o impacto dos mais pobres foi insignificante. “O gap de emissões” entre ricos e pobres (50% base da pirâmide pode aumentar consumo sem comprometer da COP25).

Roberto P. Guimarães

SUSTENTABILIDADE RETÓRICA, DOMESTICADA

Sustentabilidade e SD estabelece critérios ambientais (conservação), sociais (justiça e equidade), econômicos (uso racional de recursos), políticos (participação e democracia) e culturais (identidade) para incorporar a Natureza às atividades humanas, por meio da integração e transversalidade de tais dimensões.

Trajeto Estocolmo-Rio, superou abordagem ambiental e divórcio entre meio ambiente e desenvolvimento, forjou vínculos entre modelos dominantes e a crise. As propostas de Desenvolvimento Sustentável encontram-se consolidados nas políticas públicas e no direito internacional, com princípios como “precaução”, “poluidor-pagador”, “obrigações comuns, mas diferenciadas” e “justiça ambiental”. A partir da Rio-92, processo de domesticação. A Convenção de Biodiversidade subverteu distribuição equitativa de benefícios científicos, tecnológicos, econômicos e comerciais entre os países possuidores e que a exploram, a tentar reduzir a taxa de extinção e regular comércio espécies ameaçadas. Desapareceu caráter transformador (padrões de produção e consumo) da Convenção do Clima, que passou apenas a balizamento para estratégias de mercado sem modificar matriz energética de combustíveis fósseis.

Domesticação do DS em seu DNA social. Imagine substituir “luta contra a pobreza” por “luta contra a riqueza” (reduzir a pobreza requer redução e distribuição de riqueza) Amartya SEN, Prêmio Nobel e criador do IDH, define DS como aquele que “preserva e estende as liberdades dos indivíduos sem comprometer a possibilidade de que as gerações futuras desfrutem de liberdades semelhantes ou ainda maiores”.

A Desenvolvimento Sustentável terminou por esterilizar o conteúdo revolucionário fora da retórica. O consenso a esse respeito revela um certo gatopardismo pós-moderno, quando saõ introduzidas mudanças cosméticas que desmobilizam a sociedade e nada muda nas instituições, estruturas e mecanismos de poder que permitem que prossiga a insustentabilidade atual agravada pela crise do clima.

À NOITE TODOS OS GATOS SÃO MARRONS

Sombras obscurecem atores e decisões frente à crise socioambiental e confundem também os desafios de governança. Longe da “falta” de vontade política, sobra vontade para não fazer nada. Os gastos militares nas aventuras estadunidenses no Iraque, Afeganistão e Ucrânia excedem o necessário para reverter o aquecimento (US$ 6 bilhões contra 1 bilhão do IPCC). Acrescente-se US$ 14 bilhões governos transferiram em 8 semanas para bancos que causaram a crise financeira global, 20x mais que para reverter aquecimento global (20 anos de COP25).

Decisões adotadas no Rio expõem fracasso posterior e imobilidade atual. (1) Convenção sobre Mudanças Climáticas “recomenda” estabilização de emissões/1990; sem prazos. (2) Biodiversidade, “sempre que possível ou apropriado”. (3) Declaração de Princípios sobre Manejo, Conservação e Desenvolvimento Sustentável de Todos os Tipos de Florestas transformou-se em declaração de princípios, sem mecanismos de compensação pela preservação de suas florestas. (4) Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento substituiu o princípio da precaução pelo uso de uma “abordagem ecossistêmica”. (5) Agenda 21 (40 capítulos, 115 áreas prioritárias), US$ 125 bilhões anuais até 2000 (Sul transferia US$ 500 bilhões anualmente) compromissos de US$ 5 bilhões anualmente. (US$ 10 bilhões).

Em resumo, convivemos ainda com realidades conflitantes. O estilo esgotou-se, é insustentável, mas não são adotadas medidas para reformar as instituições econômicas, sociais e políticas que o sustentam. Sustentabilidade favorece um novo padrão de acumulação capitalista, verde, sem revelar os processos que regulam a propriedade, controle, acesso e uso de recursos naturais e os padrões de consumo

DESAFIOS DE GOVERNANÇA FRENTE À CRISE SOCIOAMBIENTAL

Torna-se urgente uma Agenda 21 versão 2.0 necessariamente antissistêmica.

Mitigação continua essencial, mas exige priorizar adaptação e redução de riscos. Nossos parceiros na Natureza (chimpanzés) revelam habilidades desconhecidas para cavar poços de água em resposta à crescente escassez do recurso.

Se impõe fortalecer direitos coletivos e difusos quando se constata que a desigualdade agrava as injustiças socioambientais e exclui as gerações futuras.

O acesso e uso de saúde/água (proxies clima), além de bens públicos, constituem bens comuns ​​cujas restrições garantem a sua regeneração. Solidariedade na provisão se opõe à privatização. Praticamente 300 cidades (Atlanta, Berlim, Buenos Aires) já reverteram a privatização do saneamento e da água potável. Em Manaus, 90% ainda não têm acesso à água após 20 anos de privatização supostamente para alcançar a “universalização” dos serviços.

Torna-se urgente abandonar a retórica e identificar efetivamente os atores com vontade política para inação, e impor sanções pelo descumprimento de acordos multilaterais de proteção ambiental. Isto requer, por exemplo, incluir nas disputas levadas à a Organização Mundial de Comércio os países que não cumprem compromissos de redução de emissões e desequilibram o comércio com vantagens competitivas espúrias. Certificar extração oficial e transparente 2/3 das cadeias de fornecimento de produtos de madeira.

Igualmente importante revela-se desmantelar a estrutura de subsídios e incentivos perversos nos combustíveis fósseis. Prioridade na produção de cimento, que emite gases de efeito estufa três vezes mais do que o transporte aéreo, e é o segundo maior emissor gases do setor industrial. Cidades Inteligentes ou Cidades de 5 Minutos (países Escandinavos e França) caminham nessa direção

A medida mais revolucionária e efetivamente sustentável é a Renda Básica Universal nos moldes mais modernos articulados por Maynard Keynes há quase 100 anos.

Prevalece o engano da suposta impossibilidade de colocar em prática renda universal por escassez de recursos, como alertaram 100 bilionários (EUA, Canadá, UK, Alemanha, Nova Zelândia, Holanda) quando instaram em Davos que governos a arrecadar mais impostos sobre seus rendimentos, lucros uma declaração subscrita pelo DGl do FMI, a instituição que é a mais feroz defensora do Estado Mínimo e da liberdade de mercado com garantias individuais para as empresas.

Por outro lado, a evolução da tributação revela que é hora de modificar radicalmente a pirâmide social dos impostos. Agricultura e manufatura, caíram de 10% e 42% do PIB na década de 1950 para 3% e 15% em 2000, enquanto serviços, especialmente os financeiros, dobraram.

Felizmente, iniciativas de universalização de uma renda básica para todos os cidadãos estão em andamento na Bélgica, Canadá, Finlândia, França, Alemanha, Japão, Kuwait, Índia, Namíbia, Espanha, Holanda, Portugal, Cingapura, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos.

No caso do Brasil (2004 Lei da Renda Básica do Cidadão, sem regulamentação), tributar o 1% mais rico contribuiria com mais de US$ 160 bilhões/ano, ou ½ da renda mínima. Ladislao DOWBOR lembra também que lucros financeiros e títulos do governo (isentos de impostos) chegam a 20% do PIB. O 1/2 seria suficiente para 1 SM/Bras. por 100 anos.

Por último, o New Green Deal proposto pela Administração Biden aponta na direção certa, embora não possa ser vista como uma panaceia porque as inovações não são ambientalmente nem socialmente neutras. Carros elétricos envolvem a extração de lítio c/implicações ambientais –um milhão de litros de água/kg de lítio, e geopolíticas –Ellon Musk e governo britânico reconheceram que apoiaram golpe na Bolívia, um dos maiores produtores de lítio. A extração de coltan e cobalto, para componentes eletrônicos em carros e PCs, produz genocídio na RDC. E não é neutro o comércio de emissões via tecnologias de energia renovável como resultado de extensões de terras para produção solar/e a disposição final de equipamentos após vida. 

COMENTÁRIOS FINAIS A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Conclusão inevitável, Tzeporah Berman, do Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis sugere com acerto que faz falta:“coragem moral” urgente para adotar as medidas para reverter o aquecimento global e adaptar-se aos impactos da crise climática. Coragem ainda mais necessária diante do que o Secretário Geral da ONU classificou como “suicídio coletivo” a inação dos gerenso no enfrentamento à crise climática. A inação e a imobilidade equivalem, em suas palavres, “não à ignorância, mas ao roubo” do seu futuro pelas gerações atuais.

Não deixa de significar um sinal de alento que dois terços dos norte-americanos e boa parte dos europeus defendem medidas drásticas de redução de gases, ainda impliquem maiores custos sociais e econômicos. s pesquisas de opinião pública devem ser “qualificadas” porque também contêm sinais contraditórios. É o caso da conhecida Síndrome MIMBY, Not In My Back Yard NOT In My Backyard), em que se defende a adoção de medidas drásticas, mas desde que não afetem o meu estilo de vida e padrão de consumo

A nova versão do NYMBY se manifestou após a destruição causada por Sandy(out/2012) que inundou 500.000 casas, a morte de 43 pessoas em Nova Iorque e provocou perdas econômicas de US$32 milhões. Apesar do apoio maciço à de construção de obras de prevenção para não inviabilizar ocupação de 850km da costa norte-americana, os impactos urbanos dessas medidas desencadearam de protestos das camadas mais abastadas da sociedade quanto de setores sociais mais impactados pelas medidas concebidas precisamente para responder às demandas sociais.

O agravamento da crise climática e a ocorrência frequente de eventos extremos permitiram o surgimento de uma síndrome correlata ao NYMBY, a Síndrome da Invisibilidade. A manifestação mais clara é o fato pessoas observarem a Amazônia por meio de imagens de satélite, mas seus habitantes permanecerem invisíveis, marginalizados e excluídos das propostas de superação da catástrofe sem considerar as necessidades de 30 milhões de pessoas e comunidades que dependem da Amazônia para sua sobrevivência e práticas culturais.

Na Amazônia, invisibilidade leva a propostas com sentido econômico ou turístico, mas política e eticamente questionáveis. Ignoram que a região contém 30 milhões de habitantes, dois terços em áreas urbanas). Se fosse um país, a Amazônia seria menor apenas do que países mais populosos como Brasil, México, Colômbia e Argentina, e dividiria o quinto lugar com o Peru. Ainda assim, as demandas e necessidades de suas populações permanecem marginais e invisíveis nos esquemas conservacionistas que pecam por aprofundar a injustiça ambiental e tratar a região apenas como uma floresta.

Cobra atualidade a sabedoria indígena. Se “A natureza é o espelho de Deus” é uma imagem correta da situação, o estado atual do ambiente social e natural não deve deixar o Criador satisfeito com o que os seres humanos fazem com sua Obra. Para melhorar imagem da sociedade projetada na natureza, será necessário aprimorar sistemas de governança da Terra que aprofundaram os desafios.

Adequado lembrar, nesse sentido, o discurso de despedida pres. Dwight Eisenhower, alertando para os perigos da formação de um complexo militar-industrial. Diante dessa ameaça, o anseio de paz do povo norte-americano foi sentido com tanta intensidade que “um dia desses os governos deveriam sair do caminho e deixar que eles [os povos] usufruam deles”.

Chegou, portanto, a hora de instituições sociais e políticas saírem do caminho para que sociedades aprendam a enfrenta e superar as crises socioambientais que ameaçam a continuidade da civiliação. No nível das políticas públicas, devemos incorporar a racionalidade ecológica na forma de alocar recursos, lutar pelo poder ou simplesmente decidir como promover o desenvolvimento. 

Parafraseando relatório da ONU sobre desenvolvimento humano, ninguém deve ser condenado a uma vida curta ou miserável só porque nasceu na classe errada, no país ou território errado, ou com o sexo ou etnia errados.

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