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Câmeras noturnas flagram polinização inédita, por gambás

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Maria Guimarães || Editora Executiva da Pesquisa FAPESP

Enquanto observavam as flores da planta Scybalium fungiforme para documentar os visitantes diurnos na Reserva Biológica da Serra do Japi, interior paulista, estudantes de biologia começaram a receber por WhatsApp mensagens de seus colegas que estavam no laboratório da base de pesquisas assistindo às gravações realizadas na noite anterior: um rato apareceu lambendo o néctar das flores. A notícia era boa. Alunos da disciplina de graduação Projetos Integrados em Ecologia, ministrada pelo biólogo Felipe Amorim, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campusde Botucatu, os jovens tinham previsto que a planta seria polinizada por algum roedor. Logo em seguida novas mensagens trouxeram a surpresa: depois do rato aparecera um gambá, da espécie Didelphis aurita, que acabou sendo o visitante mais assíduo. “Pensávamos em um mamífero, mas não tinha nos ocorrido que poderia ser um gambá”, lembra o pesquisador, que redigiu os resultados no artigo publicado na revista Ecology em 11 de fevereiro.

Didelphis aurita com mariposa na ponta da cauda – Foto: Felipe Amorim – Unesp

Ao comentar o achado aparentemente inédito com colegas, Amorim acabou descobrindo que a novidade não era assim tão nova. Há quase 30 anos, início dos anos 1990, a bióloga Patrícia Morellato, do campusde Rio Claro da UNESP, andou curiosa com essa mesma planta da família das balanoforáceas, que de fato é bem peculiar. Os conjuntos de flores (inflorescências) brotam junto ao chão e mais se parecem com cogumelos vermelhos. Apenas depois de retiradas as brácteas de cor vermelha (folhas modificadas semelhantes a escamas), aparecem as minúsculas flores. Milhares delas nas inflorescências femininas, centenas nas masculinas. Essas flores são praticamente a planta inteira, que é uma parasita das raízes de outras plantas, como árvores e trepadeiras, e não tem folhas verdadeiras – apenas um tubérculo onde armazena os nutrientes extraídos da planta hospedeira. Apreciadora das plantas africanas e australianas da família das proteáceas, polinizadas, respectivamente, por roedores e marsupiais, a bióloga viu uma semelhança na estrutura floral. Desconfiada dos pequenos mamíferos, passou a tentar descobrir o responsável por transferir o pólen das flores masculinas para as femininas de S. fungiforme.

Frequentando a mata de Santa Genebra, junto ao campus da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) de dia e à noite, ela verificou que as flores produziam néctar entre 22h e 2h. “A quantidade era grande, como umas cascatas de mel”, lembra. Ela explica que a copiosa produção não custa nada para a planta parasita, que suga a seiva diretamente dos vasos do floema de suas hospedeiras. Era um inverno seco, e durante o dia praticamente não restava líquido açucarado. Ela nunca conseguiu ver os visitantes noturnos, mas deixou pó fluorescente nas inflorescências e dispôs armadilhas em torno com a ajuda do marido, o zoólogo Célio Haddad, igualmente da Unesp de Rio Claro, habituado à lida noturna na floresta por ser especialista em sapos e afins. Capturaram um gambá da espécie Didelphis albiventris, cujo focinho, exposto à luz negra, brilhou na cor do pó deixado nas flores. Era um indício animador, suficiente para que Morellato apresentasse a observação no 46º Congresso Nacional de Botânica no ano de 1995 e encomendasse ao ilustrador Jaime Somora um desenho do gambá se servindo do néctar de S. fungiforme.

Nesse ínterim nasceu a filha que ela à época gestava, as obrigações de professora recém-contratada se enfileiraram e os projetos seguiram por outros rumos, embora a vontade de solucionar o enigma nunca a tenha deixado. Por isso foi grande o entusiasmo quando recebeu, por WhatsApp, o vídeo enviado por Amorim com o flagra noturno. Era exatamente o que ela previra com base nas características da flor, quando Amorim, por volta dos 10 anos, ainda brincava de ser biólogo e os alunos de sua disciplina nem sequer tinham nascido. “Não tínhamos câmeras de visão noturna naquela época”, compara Morellato. Hoje não é preciso muitos recursos para obter esse tipo de equipamento. “Usamos duas câmeras de segunda mão que comprei no Mercado Livre com meu próprio dinheiro e as protegemos da umidade da noite com potes de sorvete”, conta Amorim.

Ele ficou ainda mais entusiasmado ao comparar as observações dos alunos aos registros do caderno de campo de Morellato, que ela escaneou e enviou. “As medições da produção de néctar, os horários de abertura das flores, tudo batia.” Durante os seis dias da expedição de campo os estudantes acordaram cedo e trabalharam madrugada adentro, fazendo medições nas plantas, no ambiente e registrando os animais visitantes. O rato nunca mais voltou, mas o gambá esteve presente em quatro das cinco noites de observação, e fazia um trajeto aparentemente ordenado, de uma planta para outra, bebendo o nutritivo néctar. “É uma estratégia que chamamos de linha de captura, que se assemelha à estratégia de alimentação adotada por outros animais nectarívoros, como beija-flores e morcegos, e semelhante ao que os biólogos fazem quando dispõem armadilhas”, explica Amorim. “Quando chega à última flor, o animal pode voltar à primeira que possivelmente ela já terá produzido mais néctar.”

De dia, mais descobertas surpreendentes: beija-flores-de-fronte-violeta (Thalurania glaucopis) eram visitantes florais frequentes, assim como vespas e abelhas. Todos buscando o néctar, mas ainda não é possível avaliar a eficiência desses animais na polinização de Scybalium fungiforme. A hipótese dos pesquisadores é de que o principal polinizador é o gambá, que com suas mãos hábeis e focinho é capaz de retirar as brácteas que cobrem a inflorescência e assim expor as flores e o néctar. Os frequentadores diurnos devem atuar como polinizadores secundários. “É possível fazer esses estudos construindo gaiolas que excluam apenas os gambás e comparando as taxas de frutificação”, explica Morellato.

É provável que não faltem candidatos para continuar a pesquisa e investigar as novas hipóteses. A maior parte dos autores do artigo são os estudantes da disciplina, que nunca tinham conduzido um projeto de pesquisa na íntegra nem publicado um artigo. “Um dos objetivos da disciplina é possibilitar a alunos do último ano do curso de ciências biológicas que coloquem em prática o método científico. Acho que tem dado certo”, conta Amorim.

Gamba de orelha branca

Precedente histórico

Especialista em polinização por mariposas da família dos esfingídeos, Amorim faz um paralelo da história com um acontecimento que envolveu o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) em 1862. Ao receber do colecionador de orquídeas James Bateman uma orquídea nativa de Madagascar (Angraecum sesquipedale), cujo tubo floral tinha 30 centímetros (cm), o autor da teoria da seleção natural postulou que existiria naquela ilha uma mariposa com uma língua (probóscide) de comprimento compatível. Na época a ideia foi ridicularizada pelos entomologistas, conta Amorim. Apenas 41 anos depois, em 1903, uma dupla de entomologistas britânicos, Walter Rothschild (1868-1937) e Heinrich Jordan (1861-1959), coletando insetos noturnos em Madagascar, encontraram e descreveram uma mariposa da família dos esfingídeos. Ao desenrolar sua probóscide, verificaram que era longa o suficiente para alcançar o néctar da orquídea e transferir seu pólen. Darwin não viveu o suficiente para ver sua previsão confirmada, mas chegou a receber em 1877 o apoio do naturalista alemão radicado no Brasil Fritz Müller (1821-1897), que, trabalhando em Santa Catarina, encontrou uma mariposa da mesma família com probóscide de tamanho semelhante.

No dia 12 de fevereiro, 211º aniversário do mais célebre naturalista britânico, a Sociedade Americana de Ecologia, que publica a revista Ecology, divulgou um texto sobre o trabalho brasileiro. “Na nossa história, a Patrícia fica no lugar de Darwin”, brinca Amorim.

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