Estado concentrou mais da metade dos incêndios da Amazônia nos três primeiros meses do ano; falta d’água e pode afetar 70 mil pessoas
Entre janeiro e março, a Amazônia teve aumento de mais de 180% de queimadas registradas, em comparação com o mesmo período no ano passado. Com 7.861 focos de fogo, é o pior número visto desde 2016 e a situação é especialmente crítica em Roraima, que acumula mais de 4 mil desses focos – o que representa um aumento de 310% em relação ao mesmo intervalo de meses em 2023. Em comparação aos primeiros trimestre das últimas duas décadas, esse é o pior número já registrado.
Desde o início do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que mapeia as queimadas em território nacional através de satélites, em 1999, apenas no ano de 2001 o número de focos de incêndio ultrapassou a marca de 4 mil registros.
“O recorde de queimadas em Roraima é mais um episódio na sequência de eventos extremos observados na Amazônia, desde setembro do ano passado”, explica Mariana Napolitano, diretora estratégica do WWF-Brasil. “Em um ano de El Nino e aquecimento do Atlântico, no qual tivemos a pior seca da Amazônia em 120 anos, era esperado que a temporada de seca em Roraima fosse bastante intensa. Nessas condições, qualquer foco de queimada pode ganhar proporções maiores e sair do controle.”
O número exacerbado de queimadas afetou diretamente o abastecimento de água do estado, principalmente nas cidades e comunidades indígenas. Segundo organizações indigenistas locais, a estimativa é que pelo menos 70 mil pessoas sejam prejudicadas. Além disso, outras áreas podem ser afetadas, como o abastecimento de comida, os serviços de saúde e a economia regional.
Segundo Edinho Batista, coordernador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), apesar da volta da chuva em abril que controlou as queimadas, as consequências da seca persistem. “O fogo destruiu muitas roças, deixando muita gente em situação de escassez alimentar, e a redução do nível dos igarapés, lagos e poços ainda não se normalizou”, contou Batista. “Em inúmeras comunidades indígenas temos relatos de pessoas que estão consumindo água sem tratamento, cheia de lama, com grande risco para a saúde.”
Ele completa dizendo que o nível do Rio Branco, principal fonte de abastecimento de água potável de Roraima, baixou dramaticamente a partir de fevereiro. Em Boa Vista, capital do estado, Edinho estima que cerca de 90% da população depende do Rio Branco para obter água potável. “A situação é de extrema gravidade”, lamenta ele.
Outros estados também desempenham números preocupantes, pois o aumento das queimadas no bioma amazônico é recorde. Somente no mês de março, 2.654 de focos foram registrados, o que significa um aumento de 160% em relação ao mesmo mês no ano passado e de 105%, comparando com a média dos últimos 10 anos.
Por outro lado, os números de desmatamento caíram. Em relação ao ano passado, os alertas da Amazônia Legal reduziram em 40% no primeiro trimestre de 2024 – segundo o Sistema Deter, do INPE, a área desmatada saiu de 844,6 km² para 507,1 km². No estado de Roraima, entretanto, o desmatamento teve um aumento de 25% em relação a 2023.
Secas e fumaça
De acordo com o monitoramento da Companhia de Águas e Esgoto de Roraima (CAER), o Rio Branco atingiu um nível negativo logo nos 15 primeiros dias do mês de fevereiro. Em março, o nível estava em 15 centímetros negativos, em abril, o nível ainda era de 13 centímetros negativos, segundo último Boletim Hidrológico da Bacia do Amazonas
A produção de água potável nos poços artesianos do estado foi reduzida em 20%, o que, segundo a CAER, acaba ocasionando baixa pressão na rede de distribuição de água dos bairros mais afastados.
Por conta das queimadas, no início de abril, Boa Vista apareceu no Índice Mundial de Qualidade do Ar como a 15ª cidade com o ar mais contaminado e perigoso do mundo para se respirar. A cidade passou a maior parte do mês de março encoberta por uma fumaça densa.
O Corpo de Bombeiros de Roraima aponta a prática local de atear fogo para “limpar” a terra como um dos fatores que agravam a situação, uma vez que o fogo pode sair de controle – e atribui a origem do fogo exclusivamente a ações humanas.
“Houve relatos de um aumento significativo em internações por conta de problemas respiratórios”, declarou Edinho Batista. De acordo com ele, as queimadas e escassez de água atingem diversas regiões do estado, como as terras indígenas Raposa Serra do Sol, Serra da Lua e São Marcos. “Na Terra Indígena Yanomami, há relatos de crianças e idosos prejudicados pela fumaça, além de casas e roças destruídas por incêndios e falta de água potável”, afirmou Batista.
Ajuda humanitária
Edinho conta que está sendo organizando uma força-tarefa do CIR, em parceria com o WWF-Brasil, para arrecadar recursos financeiros para ajudar as famílias afetadas pela seca.
“Temos 63 brigadistas comunitários treinados que atuaram intensamente no combate ao fogo. Com a explosão das queimadas, foi preciso que a força-tarefa incluísse também as comunidades indígenas, que foram para o campo de combate, além de estudantes e professores, já que as aulas foram paralisadas por causa do fogo”, contou.
No início de abril, representantes de pastorais, articulações e organizações da Diocese de Roraima, e de movimentos e organizações da sociedade civil em Roraima lançaram uma nota pública afirmando que “a situação nos territórios indígenas é gritante e desesperadora.”
O especialista em Conservação do WWF-Brasil, Osvaldo Barasssi Gadarjo, reforça a parceria com o CIR e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Vamos dar um apoio para a essas famílias para a aquisição de cestas básicas. Para fortalecer as brigadas do CIR, vamos fornecer ferramentas e equipamentos, em especial os proteção individual, como capacetes, coturnos, gandolas, calças, óculos e outros itens de segurança dos brigadistas”, afirma. “Estamos também avaliando a compra de algumas moto-bombas para apoiar as comunidades que estão sem água.”