* Por Arthur Soffiati
Se o volume de chuva que se abateu sobre o Rio Grande do Sul nesse abril de 2024 caísse no oceano, apenas os institutos de meteorologia e as embarcações atingidas teriam informações dele. A precipitação pluviométrica não interessaria à maioria das pessoas no seu individualismo e imediatismo. Se desabasse na Amazônia ou no deserto do Saara, poderia haver algum estrago no mundo humano, mas a vasta rede de rios e a areia absorveriam a maior parte das águas pluviais.
Por que, então, causou tanto estrago no Rio Grande do Sul? Nossa tendência é sempre buscar culpados no curto prazo. Desde a cheia de 1941, as providências necessárias não foram tomadas pela sucessão de governadores e prefeitos. Fulano e cicrano roubaram dinheiro que deveria ir para obras de contenção de alagamentos. Prefeitos, deputados estaduais e vereadores aprovaram leis beneficiando a construção civil em margens de rios. Os governos não atentaram para os alertas do Cemaden. Sim, de fato tudo isso aconteceu. Mas, se não tivesse acontecido, parece que o desastre não seria muito diferente do que foi.
É preciso buscar explicações no plano estrutural e no longo prazo. Examinemos um mapa do Rio Grande do Sul. Observa-se que, a partir do rio Mampituba, que foi usado como limite entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul, às margens do qual se ergueram, no primeiro estado, o núcleo urbano de Passo de Torre e, no segundo, a cidade de Torres, ambos formando uma conturbação, até o arroio Chuí, fronteira entre Brasil e Uruguai, formou-se uma longa restinga com larguras variáveis. Procuremos uma formação pedregosa costeira ou uma ilha ao longo desse litoral. Não encontraremos. Formações pedregosas na costa e no mar facilitam a saída de água do continente. Os rios que tentam furar essa faixa de areia acabam morrendo na praia. Poucos chegam ao mar. Além do Mampituba e do Chuí, há o conhecido canal que liga a grande laguna dos Patos ao mar. Todas essas saídas foram prolongadas com molhes de pedra, o que espessa mais ainda a restinga, pois as correntes marinhas transportam areia, que fica retida por esses espigões.
A costa é parecida com aquela que se estende entre os rios Itapemirim, no Espírito Santo, e Macaé, no Rio de Janeiro, só que muito mais extensa. O interior do continente também se assemelha ao norte-noroeste fluminense: no fundo (norte), a zona serrana; no centro, uma zona intermediária; no sul, uma área baixa, quase ao nível do mar. Dois rios principais drenam o território do estado: o Uruguai e o Guaíba. O curso do primeiro, em grande parte, é usado como limite entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ele corre de oeste para leste, integrando a grande bacia do rio da Prata. O segundo desemboca na laguna dos Patos, recebendo afluentes importantes, como os rios Jacuí, Caí e o problemático Taquari. Este atravessa o território gaúcho de norte a sul, recebendo como principal afluente o rio das Antas.
Quando chove mais, as águas pluviais descem da zona serrana, ao norte, e se afunilam no Guaíba, que se alagoa, entra na laguna dos Patos e tem dificuldade de chegar ao mar. É pouco rio para drenar o estado, já que a restinga constitui uma barreira. Acrescente-se a este sistema de escoamento para todo o território o secular desmatamento, que favorece o transporte de sedimentos e a erosão. Isso significa mais água nos rios e mais assoreamento, com transbordamentos.
Agravemos a situação, acrescentando a urbanização. Ao longo desses rios, multiplicaram-se os núcleos urbanos de pequeno, médio e grande porte. Muitos deles, na área de expansão dos rios. Havendo transbordamento, essas cidades são logo afetadas. Ainda comparando o Rio Grande do Sul com o norte-noroeste do Rio de Janeiro, lá a urbanização é muito adensada que aqui.
Não contentes, agravemos o quadro. As mudanças climáticas produzidas pela ação coletiva da humanidade e pela economia de mercado em todo o planeta encontraram no cone sul uma área vulnerável a fenômenos climáticos excessivos, como estiagens severas e tempestades inclementes. O estado é sujeito a ciclones extratropicais que se acentuam com o aquecimento global.
Imaginemos o território hoje correspondente ao Rio Grande do Sul antes da chegada dos portugueses ou mesmo no início do século XX. Não há registro de chuvas tão torrenciais no passado. Mesmo a cheia de 1941 pode ser entendida como um episódio regular das chuvas decenais ou seculares. Agora, o quadro é outro. Estamos no âmbito de uma nova estrutura climática. Se governador e prefeitos se movimentassem com os alertas do Cemaden, não haveria para onde deslocar tantas pessoas.
A solução parece ser adaptar a vida urbana aos novos tempos, mas como promover essa mudança em tão pouco tempo? Alertas de chuvas, retirada de moradores de suas casas, sobrevoos de autoridades aos locais atingidos, ação das forças militares de defesa civil, declarações pomposas, caridade pública, orações vindas de todos os credos, donativos, liberação de verbas ajudam (também permitem destinações indevidas), mas não bastam. Entendo que morar numa cidade do Rio Grande do Sul tornou-se uma operação perigosa. Descarbonizar a atmosfera até 2050 parece utopia. Um novo modelo de urbanização é muito demorado. Fica bem em congressos de urbanistas que contestam seus colegas do passado.
* Arthur Soffiati é professor associado da Universidade Federal Fluminense aposentado.