Esta entrevista foi realizada por René Capriles no bairro do Leme, no Rio de Janeiro, em 1986.
Flor de Cacto
Flor de cacto, flor que se arrancou
À secura do chão,
Era aí o deserto, a pedra dura,
A sede e a solidão.
Sobre a palma de espinhos, triunfante,
Flor, ou coração?
Assente em água e fogo
Assente em água e fogo, orbitada
Na vertigem do espaço, a terra densa
Ultrapassa a palavra que a nomeia.
*Poemas do livro “Provavelmente Alegria”
Como definiria a atual situação ambiental de Portugal?
Temos em Portugal um movimento muito sério que coloca em questionamento a problemática ambiental na península. Até pouco tempo atrás não havia uma ação concertada em nível nacional e, o que é mais importante, que seja eficaz nesse campo. Além do mais, o Governo e as autarquias locais nunca deram grande atenção a essas questões especialmente porque face à relativa carência de riquezas naturais em Portugal se considerava que todo o espaço existente deveria ser aproveitado ao máximo sem perceber que essa atitude era suicida. Felizmente as coisas estão mudando e hoje temos um panorama um pouco mais estimulante.
O problema é cultural?
Sem dúvida, em Portugal se impôs uma cultura que poderíamos definir como a “cultura do eucalipto”. Depois de ter arrasado a nossa flora natural, as indústrias chegaram com a idéia de que tínhamos que semear eucalipto com a finalidade de fornecer celulose para as indústrias que fabricam papel; isto sem levar em consideração os fatores perniciosos do cultivo desta árvore forânea que seca as terras produzindo o pior tipo de erosão das terras.
Com isso os ecossistemas, principalmente os recursos hídricos, também são afetados…
A maior parte dos rios portugueses está moribunda. Há um pequeno rio afluente do Tejo, que conheci na minha infância, na aldeia ribatejana de Azinhaga; nele eu tomava banho com os meus amigos e hoje está completamente envenenado. Seu curso está totalmente doente: as fábricas de papel lançam nele seus resíduos contaminados, os curtumes despejam o chorume dos produtos químicos. Mataram os peixes, a vegetação e, de certa forma, as pessoas. Não faltam rios em Portugal. Alguns deles são indispensáveis para a nossa vida, como o Lima que, se ele se exaurisse nos deixaria em estado de grande pobreza. Quem visita esse rio não poupará louvações. O viajante somente deseja que não matem esse rio. É que em Portugal já sobejam rios assassinados.
Mas na sua obra revelam-se grandes belezas humanas e naturais em Portugal…
O homem construiu muito, pedra sobre pedra ergueu castelos; deita sementes no chão e faz uma floresta. Escolha cada qual o que preferir, mas a menor floresta será sempre maior que o mais alto castelo, mesmo não tendo mais história do que a das suas árvores. Quem diz castelo, pensa em altura, domínio de quem está de cima. Saindo de Coimbra um viajante pensará que o castelo da Lousá é, paisagisticamente, uma das mais belas coisas que se encontram em Portugal. A sua própria situação, no centro de uma roda de montes que o excedem em porte, torna, por um paradoxo aparente, mais impressiva a sensação de altura. São inúmeros os recantos plenos de beleza que existem em Portugal, em outros lugares, na planície, espaços onde a erva é lisa como um tabuleiro, pastam os animais, ao observar a gente emudece, sobram as palavras.
Os rios, na sua obra, são uma constante, viram espaços metafísicos…
Um rio é às vezes uma fúria mansa e obstinada de água carregada de barros, de profundo nateiro que é a matéria orgânica, carne de animais, fibras de plantas maceradas, folhas pisadas no grande almofariz condescendente: Não empurra, raramente afoga, não levanta o pilão das grandes torrentes.
No relato “Nasce na serra de Albarracim…” fala desses rios…
Todo o gênio desses rios se manifesta em passes insidiosos, em rodeios de mansidão – e se uma vez por outra levanta a voz, foi só porque adiante lhe puseram um dique, uma barreira. Quase nunca os destrói, passa-lhes por cima, indiferente, como um grande senhor aristocrata. Por sobre ele, colhendo talvez das águas as exaltações propícias, corre aquele vento que, segundo a lenda antiga, fecunda as éguas da lezíria, as terras baixas e alagadiças ao longo dos rios; esse vento que sacode os ramos mais altos, que arrepia a verdura das ervas e sustenta o vôo das cegonhas e o pairar ameaçador dos milhafres, os gaviões europeus.
E o céu de Portugal? Nos seus poemas e na sua prosa, sempre fala dele…
Lembro-me de há muitos anos estar deitado no chão, no campo (todos nós devíamos ter nascido e vivido no campo) com o céu por cima, azul, com vagarosas nuvens. A minha posição era de costas; e essa é a posição para quem quiser sujeitar-se à experiência. É importante que haja silêncio. (Um leve fundo sonoro de cigarras, folhagens e piar de aves não perturba. Havia tudo isto no momento de que falo.) Eu estava deitado de costas e tinha o céu por cima. E, bruscamente, o céu tornou-se qualquer coisa onde se podia cair. Não era a força da gravidade que me mantinha colado à terra, mas a minha vontade. Com as mãos espalmadas no chão, enterrava os dedos na erva macia – enquanto o céu se tornava cada vez mais fundo e azul, e as nuvens mais vagarosas, até tudo se suspender num minuto de terror absoluto e de fascinação. Eu ia cair no céu infinitamente. Animal deste planeta, sem asas que me levassem à nuvem mais baixa sequer, me sentei de rompante, rolei de bruços, de rosto contra a terra úmida. Só por isso é que não fui o primeiro cosmonauta da história.
É tão alto este céu onde cabem todas as nuvens, e sobra espaço para o rápido vôo ilimitado do guarda-rios de peito azul. Onde cambem também olhares do povo das margens, medindo as promessas e os temores do sol e da chuva. E o rio, se é Verão, torna-se sinuoso, entre grandes bancos de areia branca, carregada de sílica, de quartzo, que ofusca os olhos na tremulina das águas e das horas ardentes. E se é outra vez Inverno, toma impulso no patamar das areias e entra nos alqueives e nas casas, faz dos olivais plantações aquáticas, e expulsa gente resignada e bichos que já herdaram esta ciência das cheias imemoriais.
Fala do rio como ser vivo, como um elo entre a natureza e o homem…
Um rio é como um ser vivo onde se incrustam outros seres vivos. Há entre ele e eles um diálogo, uma comunicação de sangue para sangue, que não se traduziu em cantares nem em histórias comuns. O povo das margens trata o seu rio familiarmente. Conhece-lhe os hábitos e as manhas, traçou-lhe a carta dos remoinhos e das areias cegas. Não o toma muito a peito, nem mesmo quando o sofrimento, as privações e o luto vêm no correr da água turva. O rio passa, o homem está ali, e tudo isto se organizou numa relação de mútua necessidade, em que o Homem, agora ou logo vencido, é sempre o vencedor final, porque é o mais paciente dos dois.
Parafraseando-o, seu verso “canta Portugal, mesmo quando Portugal não havia”.
Posso responder assim: modelou o rosto de uma terra, o rio deu-lhe uma serena beleza de horizontes, uma peculiar melancolia de espaços livres e planos. Há de ser rio para sempre, caminho andante onde são postos a navegar os barcos que as crianças escavam na cortiça, onde os mais velhos pousam os olhos, meditando confusamente nessa relação homem-rio, nesta apreensão súbita de um destino ainda por cumprir.