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O divisor de águas

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José Graziano da Silva || Diretor-Geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)

José Graziano da Silva

A visão da natureza como um anexo externo à civilização, conectado a esta por um balcão de suprimento inesgotável de recursos, já não se sustenta mais. A errática e decrescente disponibilidade de água no mundo é o melhor exemplo disso.

Enfrentamos, sem dúvida, um divisor de águas imperativo. Vistas do alto, as águas dominam 75% do planeta, e isso semeou a ilusão de uma infinitude. A inércia dessa ilusão pulsa cada vez mais frágil, porém, à medida em que a espiral do aquecimento climático nos empurra para a exatidão de uma aritmética estreita.

Cerca de 97% da água visível no planeta está nos oceanos e é salgada; dos 3% restantes, 2,2% estão na forma de gelo; 0,6%, embaixo da terra; 0,1% na atmosfera, e somente 0,1% nos rios e lagos imediatamente ao alcance da mão. Temperaturas mais elevadas vêm acelerando a evaporação dessa reserva para tornar áreas secas mais secas, enquanto as estiagens provocam prejuízos recordes e os lençóis freáticos se tornam mais rebaixados.

O fenômeno sempre existiu, mas o impacto da mudança do clima, associado ao crescimento populacional, à demanda agrícola e à urbanização acelerada, alterou os dados da equação.

Secas e estiagens intermitentes afetaram duramente mais de 1 bilhão de pessoas na última década. Dados reunidos pelo World Water Development Report (um esforço de mapeamento global do suprimento de água feito por agências da ONU) indicam que o regime de alto estresse hídrico já comanda a vida de mais de 2 bilhões de pessoas no planeta.

Em 2018, ondas de calor, secas e incêndios fustigaram duramente a Europa, os Estados Unidos e até geografias do Círculo Polar Ártico. Anomalias igualmente graves atingiram a paisagem do Nordeste do Brasil. De 2012 a 2018, a região viveu uma das mais longas secas da sua história. Quase 80% das cidades do semiárido nordestino decretaram estado de emergência nesse período. Na Argentina, a maior seca em cem anos desidratou a planície fértil da pampa úmida, fazendo com que as colheitas do terceiro maior produtor de soja do mundo registrassem quebras de 30% a 50%, onerando o custo da alimentação com desdobramentos sociais e políticos sensíveis.

A FAO e o Programa Mundial de Alimentos (PMA) trabalham em regime de emergência neste momento para obter junto à comunidade internacional recursos da ordem de US$ 72 milhões, que permitam levar ajuda alimentar a mais de 700 mil pessoas — famílias de pequenos agricultores em sua maioria — flageladas por secas e chuvas torrenciais que vêm castigando sucessivamente os sistemas agroalimentares de Guatemala, Honduras e El Salvador.

Organismos internacionais preveem que até 2050 a demanda global de água aumentará de 20 a 30% e, se nada for feito, a oferta diminuirá de forma alarmante. De fato, projeções científicas trabalham com um aumento de até 60% na ocorrência de secas nos próximos anos.

A rota de colisão já dispõe de prefigurações pedagógicas. Um dos alarmes mais estridentes ecoa da região do Sahel, na África. A faixa de terra que corta o coração da África estende-se como um corredor horizontal de 5 mil km2 que vai do Oceano Atlântico, a Oeste, ao Mar Vermelho, a Leste; da savana do Sudão, ao Sul, até o deserto do Saara, ao Norte. Sahel significa fronteira, hoje na verdade um mosaico de fronteiras geográficas, étnicas, geopolíticas, ecológicas e humanitárias.

Trata-se de diversos países fustigados por secas, guerras e conflitos étnicos, sob o pano de fundo de uma crônica falta de alimentos, que compõem esse corredor que reúne quase 500 milhões de habitantes distribuídos por realidades extremadas, entre as quais o pódio da pobreza mundial.

Alterações climáticas têm afetado diretamente esse cinturão explosivo para agravar a duração e a intensidade de secas, os surtos de fome e tudo o que isso adiciona ao abismo da insegurança e do sofrimento.

Para que o Sahel não se transforme em um ponto de não retorno da crise ambiental planetária, é preciso agir já. Nesse contexto, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) lançou projetos-piloto no Senegal e Níger para a implementação de 1 milhão de cisternas no Sahel. O programa foi inspirado na bem-sucedida experiência implantada no semiárido brasileiro nos últimos quinze anos. Na seca virulenta de 2012 a 2018, graças ao armazenamento hídrico e à capilaridade das políticas sociais que o acompanham, como o Bolsa Família, o crédito rural, o seguro safra e a aposentadoria rural, não houve êxodo na região, não ocorreram saques, e a fome não semeou cemitérios de crianças.

O que a FAO quer levar para o Sahel é justamente a experiência de convívio com a escassez de água, sem renunciar aos sistemas produtivos locais nem permitir que populações pobres sejam reduzidas à condição de flagelados.

Partimos de um princípio tão simples quanto desassombrado: a convivência com as adversidades climáticas será cada vez mais necessária; as populações pobres formarão a linha de frente desse aprendizado; ele exigirá uma associação de inovações técnicas e sociais articuladas pelo princípio de que não existe vida sem água e que, portanto, a água deve ser gerida como um bem comum.

Em recente troca de correspondências com o papa Francisco a respeito do Dia Mundial da Água (cujo lema em 2018 era “Não deixar ninguém para trás”), convergimos em torno desse chão firme. Para salvar vidas em ambiente de dignidade, temos também que salvar os meios de subsistência, sobretudo dos mais vulneráveis. A água é um elo mais forte dessa interação. Sua disponibilidade e acesso remetem inelutavelmente ao passo seguinte da relação da humanidade com a natureza e com ela mesma, sob o primado do bem comum.

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