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Pós-pandemia: retorno do Estado? Por Liszt Vieira

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Liszt Vieira | Coordenador do Fórum Global da Conferência RIO-92, Presidente do Jardim Botânico do RJ de 2003 a 2013. Autor de Cidadania e Globalização e Os Argonautas da Cidadania – A Sociedade Civil na Globalização.

Segundo a doutrina neoliberal, as desigualdades são justificadas porque todos teriam acesso ao mercado e à propriedade. Esse discurso ideológico incentivou o aumento das desigualdades em todo o mundo. Entretanto, algumas experiências de desenvolvimento mostraram a importância da igualdade e investimento em educação para obter a prosperidade coletiva. A sacralização da propriedade e da desigualdade, no dizer do economista francês Thomas Piketty, principalmente em seu último livro Capital e Ideologia, impede a solução de graves problemas como, por exemplo, o aquecimento global e se constitui em grande perigo para as sociedades humanas.

Com a economia global devastada pela COVID-19, ressurge no horizonte o tema da  centralidade do papel do Estado. Nos EUA, a folha de pagamento de algumas empresas foi garantida pelo governo Trump e a General Motors foi obrigada a fabricar respiradores. No Reino Unido, já se discute renacionalizar companhias aéreas e outras empresas. 

Liszt Viera – Foto: Arquivo

Desde a eleição de Donald Trump e a votação do Brexit, os arautos do livre mercado foram forçados a aceitar uma doutrina  diferente, uma forma autoritária e nacionalista de neoliberalismo na política comercial, industrial e de investimentos, visando ao controle exclusivo das inovações científico-tecnológicas. O capital nacional passou a preponderar, como simboliza o America First de Trump. O caso brasileiro é exceção, escapa a essa lógica nacionalista e se curva às empresas multinacionais e, no plano político, aos interesses dos EUA.

Na realidade, o capitalismo nunca fica sem o Estado, destinado a exercer funções não lucrativas de interesse público. Com a atual crise, porém, o Estado começa a assumir funções econômicas que deixaram de ser lucrativas. Mas, depois da pandemia, podem voltar a sê-lo. Em muitos lugares, esse papel do Estado persistirá, apesar da pressão do setor privado.

Um bom exemplo é o caso de Singapura, considerado agora como modelo econômico pós-Brexit para o Reino Unido. O governo de Singapura é um dos principais acionistas da indústria e comércio, possui empresas de sucesso e competitivas. Em vários outros lugares, empresas estatais são bem administradas e competitivas, contrariando a imagem tradicional de paquidermes burocráticos. Empresas estatais e agências de investimento controladas pelo Estado, como fundos soberanos, estão se multiplicando e crescendo em todo o mundo.

A acumulação global de capital é impulsionada cada vez mais pelo capital centralizado nas mãos do Estado. Com exceção dos países “colonizados”, as burguesias nacionais no Ocidente estão percebendo a necessidade do Estado para competir na economia global. A extrema direita brasileira no poder – repita-se – é caso sui generis: rejeita o nacionalismo e se coloca à disposição dos interesses norte-americanos. O patriotismo e a soberania dos militares brasileiros são de caráter meramente territorial, sem conteúdo econômico. 

Os países estão fechando fronteiras, mas o Coronavírus dispensa passaporte para entrar. A solidariedade e cooperação internacional são imprescindíveis para sair da crise. O nacionalismo econômico pode ter vida curta. O mundo é um sistema interdependente, a globalização interligou as pessoas em toda parte, não apenas no plano econômico, dominado hoje pelo mercado financeiro. Isso é visível na comunicação eletrônica, cultural, turística e nos impactos ambientais e sociais da produção econômica. 

Embora não exista uma governança global efetiva, as instituições internacionais (ONU, União Europeia e outras) têm peso político e às vezes força jurídica em suas recomendações, mas a soberania nacional tem se revelado um obstáculo para assumir medidas de proteção de direitos, da saúde, do meio ambiente, entre outras, que afetam toda a humanidade. Por outro lado, os interesses imperialistas frequentemente ignoram tais recomendações internacionais. A crise da pandemia pressiona no sentido de fortalecer a solidariedade humana, sair do confinamento do Estado Nação para defender o bem comum global como a natureza e a saúde humana. 

Cada vez mais o capitalismo neoliberal é questionado em toda a parte, e agora ainda mais com os problemas colocados pela pandemia. A crise atual obrigou os Governos a colocarem no centro das atenções a questão da saúde pública. Isso enfraqueceu a essência da política econômica neoliberal baseada na proposta da “austeridade” fiscal, um eufemismo usado para justificar e esconder a transferência de recursos públicos da área social para o mercado financeiro.

A tendência mundial após a pandemia é o resgate do papel do Estado em detrimento do reinado absoluto do Mercado. A crise da COVID-19 mudou o discurso de Estado mínimo tradicionalmente adotado por vários economistas liberais. Antes apoiavam o corte de recursos orçamentários destinados à área social – saúde, educação, pesquisa científica, meio ambiente etc. – em nome do equilíbrio nas contas públicas. Hoje, abandonaram o dogma liberal da “mão invisível do mercado”, de repente tornaram-se keynesianos e passaram a apoiar o aumento dos gastos sociais do Estado. Alguns neoliberais até se autodenominaram de “esquerda”. Mas a política econômica do Brasil de hoje santifica o mercado e demoniza o Estado. É o caso do ministro Guedes, fiel à sua anacrônica ortodoxia neoliberal, mas já enfrentando divergências com Bolsonaro e os militares do Planalto em relação ao teto de gastos.

No momento, os neoliberais estão engolindo calados. Mas, quando a pandemia for controlada e o mercado voltar a funcionar normalmente, os profetas do livre mercado no mundo ocidental retornarão vingativos, e os defensores do capitalismo de Estado e da social democracia serão golpeados com fúria. Por enquanto, o que se viu no Brasil foi a transferência em março passado de mais de R$ um trilhão de recursos públicos para os Bancos e o mercado financeiro, a transferência do Banco Central para o Tesouro de R$ 325 bilhões para pagamento aos Bancos dos juros da dívida, a compra pelo BTG Pactual da carteira de crédito do Banco do Brasil, avaliada em 2,9 bilhões, pelo preço irrisório de 371 milhões.

O retrocesso social imposto pelo atual Governo – principalmente o teto de gastos públicos, a injusta reforma da Previdência, a perda de direitos trabalhistas, a redução no poder aquisitivo do salário mínimo – diminuiu a renda e o consumo da população. Ao mesmo tempo, aumentou o lucro dos bancos e dos rentistas. Tudo isso começa a ser questionado em tempos de pandemia. Como em toda a parte, o Brasil está sendo levado a aumentar gastos sociais e a enfraquecer o neoliberalismo. O populismo do presidente, já em campanha eleitoral, começa a furar o teto de gastos. As medidas ainda são tímidas, mas a realidade vai forçar o Governo a assumir uma atitude mais enérgica. O atual confronto Bolsonaro x Guedes é o reflexo dessa situação. 

Assim, muitos economistas conservadores abandonaram o neoliberalismo ortodoxo e passaram a aceitar a presença do Estado como investidor. A crise econômica pressiona nessa direção. Alguns chegam a defender o capitalismo de Estado, mas ele seria solução apenas em caso de redução da desigualdade social e desenvolvimento sustentável com justiça social, ou seja, em caso de uma social democracia radical ou socialismo.

O Estado tende cada vez mais a ocupar a função de principal agente econômico. O capitalismo improdutivo, hoje dominante, não cria riqueza e emprego, investe principalmente no mercado financeiro. O golpe sofrido pelo neoliberalismo pode não ser mortal, ele pode retornar depois da pandemia, mas voltará enfraquecido e provavelmente não poderá mais cortar os investimentos do Estado por 20 anos, como ocorreu no Brasil, caso único no mundo.

Imposto sobre grandes fortunas, elevação do modesto imposto sobre herança, implantação da renda básica ou universal de cidadania, taxação dos lucros e dividendos, investimento estatal na infraestrutura são propostas urgentes para reduzir a desigualdade e promover um desenvolvimento socialmente mais justo. Estavam esquecidas, reprimidas pelas classes dominantes e sua mídia. Retornam agora como espectro do capitalismo de Estado, assombrando o neoliberalismo do livre mercado. 

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