Arthur Soffiati |
Pode-se considerar o nascimento de um ser como crise? Na medida em que passa a existir o que não existia, pode e não pode. Não é possível definir ainda se o Universo deveria obrigatoriamente se constituir ou se o espaço poderia prescindir dele eternamente. Não podemos impedir que astros nasçam ou morram. Mas se nascem e morrem, esses eventos são naturais e, ao mesmo tempo, críticos, assim como o nascimento e a morte de um animal.
Sabemos que a Terra nasceu há cerca de 4 bilhões e 500 milhões de anos e que suas condições iniciais eram hostis a qualquer forma de vida. Sabemos que a vida colonizou o planeta a partir de um determinado momento não apenas se aproveitando de condições favoráveis, mas também criando essas condições. Sabemos que a Terra terá um fim quando o Sol se expandir e engoli-la. Se a inteligência natural dos humanos ou a inteligência artificial dos robôs não encontrarem uma solução, seremos derretidos pelo fogo. Essa será a mais severa crise enfrentada pela vida, pois ela será literalmente extinta. Conseguiremos fugir para outro planeta com condições favoráveis?
Nada mais natural e, ao mesmo crítico, que o nascimento de um filhote. Duas células se unem e se multiplicam progressivamente dando a forma da espécie. Mas podem ocorrer erros. Nada mais natural e crítico do que a morte. Também podem ocorrer erros que encurtem ou prolonguem a vida. Com a Terra, analogicamente, é igual e diferente.
Estamos tratando do presente momento. Os estudiosos concordam que uma das muitas culturas humanas se expandiu e levou seu modo de vida aos mais distantes rincões do planeta. Esse modo de vida nasceu na Europa ocidental e tem por base explorar a natureza e a força muscular humana. Cientistas concluem que esse modo de vida retira de natureza mais do que ela pode produzir e fornecer, como recebe mais descartes do que ela pode absorver.
Houve momentos mais críticos que o atual nesses 4.500.00 anos existência da Terra? Mais uma vez, os cientistas respondem afirmativamente. Há cerca de 440 milhões de anos, encerrou-se um ciclo de expansão da vida. O número de espécies, sobretudo marinhas e vegetais terrestres, multiplicava-se. A vida pluricelular estava no período Ordoviciano da era Paleozoica. Adveio, então, uma crise ainda não devidamente estudada que provocou a extinção de 85% das espécies. Os 15% sobreviventes voltaram a se multiplicar em espécies e indivíduos no Siluriano, período seguinte.
Nova crise voltou a se abater sobre o planeta no período Devoniano, entre 370-360 milhões de anos passados. Cerca de 70 a 80% das espécies foram extintas. As que se salvaram garantiram nova expansão da biodiversidade.
O pior estaria para acontecer. No final do período Permiano, há 250 milhões de anos, ocorreu o mais ameaçador evento de crise. Cerca de 95% das espécies foram extintas. Com a sobrevivência de apenas 5% das espécies, poder-se-ia considerar a vida extinta. O Paleozoico chegou ao fim. Inaugurou-se o Mesozoico, com seus três períodos, e a recuperação da diversidade biológica. As plantas ganharam flores e o animais se tornaram gigantescos. Ingressamos na era dos dinossauros. Mas logo no Triássico, primeiro período da nova era, a Terra foi assolada por nova crise, cerca de 200 milhões de anos passados. Cerca de ¾ da biodiversidade foram eliminadas. Mas o ¼ sobrevivente garantiu a vida, em geral, e a multiplicação da biodiversidade, em particular.
A mais conhecida e estudada crise de raiz natural ocorreu há 65 milhões de anos e decretou o fim do Mesozoico. Um grande asteroide se chocou com a Terra e deflagrou erupções vulcânicas em série. Houve profunda mudança na atmosfera. As condições ambientais adversas à vida pluricelular extinguiram cerca de 80% das espécies, entre elas os grandes dinossauros. Mas a vida aguentou o tranco e se recuperou, abrindo espaço para aves e mamíferos. Assim, parece que a crise faz parte da história da Terra e da vida.
Porém entrou em cena, há sete milhões de anos, um grupo de animais estranhos que darão origem ao ser humano. A espécie “Homo sapiens” se constituiu em torno de 200 mil anos. Por milênios, ela explorou a natureza permitindo que a mesma se recuperasse. Ao se sedentarizar, por volta de 10 mil anos passados, algumas sociedades avançaram para a condição de civilizações, sem que se pretenda conferir qualquer conotação de superioridade a essa palavra. Algumas civilizações provocaram crises ambientais pelo uso inadequado da natureza ou pela superexploração dela. Foram crises localizadas e reversíveis.
A civilização ocidental, contudo, excedeu-se nessa exploração, gerando uma crise ambiental global. A ficha começa a cair para todos. Mais para uns que para outros. Essa crise inviabiliza a própria economia que a gerou. A vida e o mundo não vão acabar, mas as condições de existência do humano e de outras espécies está se tornando difícil. Há esforço de governos, empresários e população em geral em reverter a crise, mas mudar de rumo está se revelando muito difícil. Vivemos um momento crucial na história da Terra: pela primeira vez, uma espécie agindo coletivamente cria uma crise ambiental.
Se a crise faz parte da história da Terra, por que tanto alarde diante da crise atual? Nos últimos 500 anos, vêm ocorrendo extinções em número menor que nas crises anteriores. Só que em velocidade maior num tempo comprimido. Nas cinco crises anteriores, não havia sequer uma espécie com consciência. Elas não produziram as crises, mas foram colhidas por elas. Quando a Terra foi assolada por mudanças climáticas, erupções vulcânicas, fratura de continentes e deriva continental e bombardeio de corpos celestes, os seres vivos morreram sem consciência do que estava acontecendo. Se a vida fosse eliminada por completo, não haveria humanos a explicar o que aconteceu.
A crise atual distingue-se das anteriores por estar sendo produzida pela ação coletiva de uma espécie em todo a extensão do planeta. Essa espécie é o “Homo sapiens” atuando numa economia de mercado. Não são antas, ariranhas, onças e tamanduás que a produziram e a estão alimentando. Esta crise está afetando severamente as espécies, o clima, os oceanos, a integridade dos ecossistemas, as condições de vida urbana etc. A economia que gestou a crise está sendo afetada por ela. Quando se diz que a humanidade deixou de ganhar milhões ou bilhões de dólares, está se dizendo que, para ganhar essas quantias astronômicas, seria necessário aprofundar mais ainda a crise. Um sistema hipostático consiste na retroalimentação inibidora de uma ação causadora de aceleração. Tomemos o caso dos sprinklers como sistema hipostático. O fogo é uma ação que aciona a reação dos sprinklers que inibe a ação do fogo. Já a forca pode ser tomada como exemplo de sistema exponencial: a ação gera uma reação que acentua a ação inicial. A forca é um exemplo: quanto mais pesado for o corpo mais ela aperta. Parece que a economia de mercado contraria a física: quanto mais se investe, mais se acentua a crise e mais se prede o que, se aplicado, intensificaria a crise.
A humanidade e a vida em geral estão sofrendo com a crise. Ela já extinguiu espécies. Já matou pessoas. Mas não deve alcançar a magnitude das crises naturais anteriores. A crise poderá ser resolvida pela ação da espécie que a gerou, embora se tenha dificuldade em imaginar como será o mundo depois dessa resolução. O filósofo marxista Slavoj Zizek não vislumbra possibilidade de uma revolução regional ou mundial. O pensador Edgar Morin, com 102 anos, afirmou recentemente numa entrevista que não há mais ambiente favorável a uma revolução. As questões ambientais e sociais só podem ser atacadas por reformas. As mentes mais esclarecidas sabem que é preciso mudar, mas estão conscientes de que o trem está em rota de colisão a alta velocidade. Temos o ritmo lento da natureza e o ritmo veloz da economia. Entre ambos, o desejo de pisar no freio e a dificuldade de tirar o pé do acelerador. Por um lado, o trem pode estar diminuindo a velocidade, mas por outro talvez não haja tempo de evitar o descarrilamento.
No segundo caso, não podemos imaginar como será o futuro. O mundo se tornou muito complexo para todos, até mesmo para os cérebros mais privilegiados. Vivemos uma era de incerteza. Devemos trabalhar com essa incerteza, como preconizou Manuel Castells em “Ruptura: a crise da democracia liberal” (Rio de Janeiro: Zahar, 2018), Benjamín Labatut em forma de ficção em “Quando deixamos de entender o mundo (São Paulo: Todavia, 2022) e Eugênio Bucci em “Incerteza, um ensaio” (Belo Horizonte: Autêntica, 2023). Afinal, a incerteza combate a arrogância dos intelectuais que desejam tudo explicar e que para tudo têm solução.
Se a vida não se extinguiu com as cinco crises anteriores, não deve se extinguir com a atual, embora seu produtor seja uma espécie que tem consciência do que está fazendo e dos riscos que está causando ao planeta. Mas fiquemos com a incerteza.