* Por Samyra Crespo
Convivendo precariamente.
No limite da sobrevivência.
A seguir, reproduzo algumas observações – a partir da minha experiência pessoal, ao passar longas temporadas em Saquarema e ver gradativamente aumentar a população local, bem como a drástica diminuição de áreas silvestres no entorno, ao longo de 10 anos.
Visitando minha mãe, que ali viveu até 2022, e dispondo de um ambiente propício à reflexão, não pude deixar de ser uma observadora de pássaros, borboletas, joaninhas, gatos, e outros bichos que ali habitam ou lutam para sobreviver.
Pouco antes de minha mãe partir para Rio e para a sua nova vida, morando na Tijuca com minha irmã mais nova, ela me enviou por zap uma foto de um filhote de urubu que invadiu a casa para comer a comida dos gatos que criava.
Um casal deles, imagino, pais do ‘galinholo’ da foto enviada, morava numa árvore na encosta onde se encontrava a casa da minha mãe, numa pequena vila residencial à beira-mar: na verdade, à beira de um antigo mangue que deu origem à lagoa atual, ampliada artificialmente pela abertura de um canal.
Os urubus chegaram e resolveram permanecer, se alimentando das vísceras de peixes que uma pequena comunidade pesqueira deixa às margens da lagoa.
Minha mãe então me disse: ‘acho que os bichos estão invadindo meu espaço, e dizendo de alguma forma que é hora de ir embora’.
Contou- me de uma nuvem de cupins buscando ninhos depois da chuvarada e de estranhas formigas habitando os coqueiros, outras devorando plantas com voracidade.
Acho que ela se referia ao fato de os urubus serem consideradas aves de mau agouro na cultura popular, mas não quiz explorar o assunto, pois havia algo de bem triste naquela decisão de que era hora de abandonar o lugar, e também da sua independência, após a decisão familiar de que – pela idade – não poderia mais morar só e tão longe.
O fato é que alguns eventos se acumularam nos últimos tempos que antecederam sua partida.
Para começar, uma infestação de gambás.
Muitos, nós e os vizinhos os alimentavamos.
O problema nosso, e não deles, é que invadem forros e fazem ninhos nos lugares mais inusitados, como churrasqueiras e até móveis de varanda ou quintal. E dão muitas crias por ano.
Duas semanas antes da incursão do filhote de urubu, houve a invasão destrutiva dos gambás. Um descuido de uma porta aberta à noite resultou no banquete dos bichos que atacaram a fruteira, a apetitosa comida dos gatos, e foi um festival de defecação por todo lado. Vizinhos tiveram que acudi-la.
Nossos gatos? Assistiam impávidos ou entediados aos eventos: só se mobilizavam quando outros da sua espécie tentavam invadir seu território. Aí acontecia com estridência uma carinificina ritual, com direito a uivos e sons que você não consegue decifrar mas acredite, são horríveis e podem durar a noite inteira.
Não bastasse essa fauna – e nem contei como meu ex marido, morador da mesma que vila, alimentava e engordava de rolinhas a morcegos – chegaram recentemente bandos de micos.
Atacavam os modestos pomares, numa algazarra que resulta em atirar frutas verdes mordidas no chão e quebrar telhas nos telhados mais antigos.
Nem vou contar das garças e mergulhões que defecam nos carros e nos bancos de concreto que existem para os humanos contemplarem a paisagem…
Resumo desta ópera brasileira e de uma mata atlântica cada vez mais antropomorfizada (urbanizada, ocupada por nós): os bichos, encurralados, estão sendo obrigados a conviver conosco.
Não é uma convivência pacífica nem saudável: por aqui lá há quem mate gambás e gatos com ‘chumbinho’ – veneno para ratos.
Muitos dos animais, no inverno ou nas secas prolongadas, se alimentam de lixo ou comem ração destinada a outro tipo de animal. Viram ‘ladrões ‘, visitas oportunistas.
Quando há um fogaréu em alguma área por perto – e sempre há pois nessa região se queima lixo impunemente, é possível ouvir os gritos dos animais desesperados. A vegetação estala e eles gritam.
Não me alongo, para não deixá-los mais tristes com esse relato.
Na ‘ciência da conservação’, multiplicam-se programas que buscam conservar a vida silvestre: experimenta-se criar refúgios de fauna, corredores de biodiversidade, bioparques e outras iniciativas, algumas exitosas, dignas de nota.
Mas, sinceramente, os bichos estão precisando de um outro produto cada vez mais raro na praça: o espaço e a base de sustentação natural de sua vida, gravemente ameaçada pela diminuição de seus habitats, ocupados por nós.
O que mais eles precisam é de uma raça cada vez mais rara de aliados: os ‘humanos- friendly’.