* por Arthur Soffiati
Difícil dissociar a humanidade da guerra. Até mesmo os animais demarcam território e lutam contra aqueles que o invadem. Trata-se de lutas sem impactos ambientais. Os povos de vida nômade também guerreavam. Os europeus chamaram a atenção para as guerras travadas por alguns desses povos na América. Eram conflitos que causavam surpresa aos olhos ocidentais. Os indígenas travavam guerras periódicas sem pretender conquistar território e qualquer tipo de riqueza. A guerra era uma instituição em que a coragem e a destreza eram testados. Partes do corpo do inimigo morto eram colocadas no centro de um terreiro. Os vencedores dançavam em torno delas. Seus corpos também podiam ser devorados numa cerimônia. Tratava-se de uma antropofagia ritual que não tinha por objetivo saciar a fome.
Entre os primeiros povos que viviam da agricultura e do pastoreio, porém, a
guerra passa a ser ofensiva e/ou defensiva. Tratava-se de defender o território da
invasão de povos também sedentários ou nômades que pretendiam obter a produção
alimentar dos sedentários. Esse tipo de guerra continuou com as primeiras
civilizações.
Mas, agora, além da defesa contra saqueadores, a guerra adquire uma
dimensão bem maior. As primeiras civilizações têm por base a divisão sexual, técnica,
territorial e social do trabalho. Essa divisão cria as forças militares e a especialização
de armamentos. O estandarte de Ur, cidade da Mesopotâmia, é uma das mais antigas
representações da guerra e da paz. Ainda hoje, assusta.
Com as guerras entre civilizações, as sociedades humanas e a natureza sofrem grandes baixas. Os militares se especializam na arte da guerra. São famosas e terríveis as batalhas travadas pelos assírios contra os inimigos e contra os animais. No vale do rio Indo, na civilização do Camboja, entre os maias e na ilha de Páscoa, além das guerras de defesa e de ataque, também a natureza foi devastada. Crises ambientais contribuíram para a declínio dessas civilizações. Contudo, trata-se de crises localizadas e reversíveis.
Os impérios exigiram grande esforço na arregimentação de pessoas para as forças armadas. Elas se resumiam a infantaria e forças navais. Mesmo assim, retiravam muitas pessoas das atividades produtivas e sobrecarregavam as que ficavam no campo e na cidade. Além do mais, causavam inumeráveis baixas entre os combatentes. A natureza também pagava alto preço.
Essas guerras todas eram terríveis, mas artesanais. Homem contra homem. Comandantes na linha de frente. Inimigos capturados e escravizados. A guerra era uma instituição. Mas uma mudança profunda começou a se processar a partir do século XV. A pólvora, já conhecida na China em fogos de artifício, passou a ser usada em armas. Ela já vinha impulsionando projéteis nos primitivos canhões estreados na Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre Inglaterra e França ainda não constituídos como Estados Nacionais.
Com a expansão marítima da Europa, no século, XV, a pólvora se generalizou como impulsionadora de projéteis. Os guanchos, povo que habitava o arquipélago das Canárias, ao serem atacados pelos espanhóis em 1402, pensavam estar diante de um animal com seis pés e duas mãos, sendo que em uma delas havia um pau de fogo. Eles entendiam que cavalo e cavaleiro formavam um só animal. A arma de fogo rapidamente evoluiu no processo de conquista e colonização dos continentes africano, asiático e americano.
Logo, a guerra passou a ser um artigo de mercado. Artesãos e indústrias se especializaram na fabricação e no fornecimento de armas de fogo para a guerra. À medida em que os países europeus conquistavam colônias em outros continentes, as guerras foram ganhando dimensões mundiais. As guerras entre as potências coloniais europeias tinham reflexos no mundo todo. O reino unido formado por Espanha e Portugal (1580-1640) travou guerra contra a Holanda na Ásia, África e América. França e Inglaterra lutaram na Índia e no Canadá. A Inglaterra conquistou portos na China com as Guerras do Ópio, no século XIX.
As guerras napoleônicas envolveram os impérios britânico, austríaco e russo. Essas guerras causaram transformações nas colônias europeias da América, que foram se tornando independentes também guerreando suas metrópoles. Depois da independência, as antigas colônias travaram guerras entre si, como aconteceu na Guerra do Paraguai (1864-1870). Os Estados Unidos se dividiram entre norte e sul e travaram a sangrenta Guerra de Secessão (1861-65). Assim aconteceu entre Japão e China (1894-95).
Guerras entre países europeus com repercussão mundial desembocaram nas duas grandes Guerras Mundiais (1914-18/1939-45). Os avanços foram grandes e lucrativos para a indústria da guerra entre 1914-18: canhões, aviões, navios, armas químicas etc. Com a Segunda Guerra Mundial, a energia nuclear entrou em cena, quando Estados Unidos lançaram duas bombas atômicas sobre o Japão (1945). Esse evento tem sido usado como o marco inicial da época do Antropoceno. Certamente, a natureza foi excessivamente destruída com todas essas guerras, mas poucos sabiam ouvir seus gritos. Por outro lado, foi possível medir o sofrimento das pessoas atingidas e os litros de sangue derramados.
A multiplicação de países em moldes ocidentais depois de 1945 exerceu grande demanda sobrea indústria bélica, uma das mais prósperas do mundo atualmente. Ela não paga compensações ambientais. Muitas guerras ocorreram desde então. Não houve nenhum momento de verdadeira paz no mundo desde o século XV, talvez antes mesmo. Os desfolhantes químicos usados pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã também não destruíram a natureza? Os agrotóxicos pulverizados no Cerrado para matar insetos e outros invertebrados não seriam armas contra humanos? Os países travam uma guerra total: quando ferem a natureza, atingem pessoas. Quando atingem pessoas, ferem a natureza.
Atualmente, duas guerras estão em curso no mundo: Rússia contra Ucrânia e Israel contra palestinos da Faixa de Gaza. A Ucrânia conta com apoio da OTAN. Israel conta com apoio da União Europeia, dos Estados Unidos e do Canadá. Em ambas, há violência e injustiça. No caso da Faixa de Gaza, Israel está atacando de forma desproporcional, pelo menos, e prestes a cometer novo genocídio. Nesse momento, é claro, a atenção está voltada para crianças, mulheres e inocentes que estão sendo castigados por serem palestinos. Não cabe chamar a atenção para os estragos causados por Israel, por exemplo, no pequeno e ecologicamente rio (uádi, em árabe) Gaza por parecer descaso com vidas humanas. Além de genocídio, um ecocídio está em curso em Gaza.
* Arthur Soffiati é professor associado da Universidade Federal Fluminense aposentado.