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Áreas com 40% ou menos de cobertura vegetal podem virar deserto

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Rose Talamone || Jornalista do Jornal USP

Abordagens multidisciplinares permitiram aos pesquisadores identificar com mais precisão riscos de desertificação e mudar o paradigma de que cobertura vegetacional não estava envolvida nas mudanças de regimes ecológicos.

Um dos grandes desafios da ciência até hoje é determinar em que ponto do desequilíbrio ambiental surge um novo ecossistema, ou seja, quando uma zona semiárida, por exemplo, pode se transformar num deserto. Estudo na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, após analisar imagens de satélite do Deserto de Múrcia, no Sul da Espanha, uma região mediterrânea, concluiu que no caso da desertificação, uma cobertura de vegetação menor que 40% já implica em risco.

Segundo os autores Fernando Meloni, Gilberto Nakamura, Cristiano Granzotti e Alexandre Martinez, para a pesquisa foi possível alinhar conceitos e ferramentas da termodinâmica, mecânica estatística e ecologia para mapear mudanças catastróficas, ou seja, quando existe um colapso dos ciclos e processos que mantêm um ecossistema e o transforma em um novo ecossistema.

Com uma abordagem multidisciplinar, os pesquisadores construíram um gráfico que mostra sob quais circunstâncias a vegetação se configura como deserto ou como área vegetada. Os resultados mostraram que coberturas vegetacionais abaixo dos 40% favorecem que os ecossistemas colapsem e se tornem desertos, enquanto coberturas maiores favorecem a manutenção do ecossistema.

De acordo com o estudo, as próprias estatísticas do sistema, médias, variâncias e densidade das manchas vegetacionais, fornecem as informações necessárias para isso. “Essas estatísticas são valores calculados a partir da vegetação e permitem inferir se, por exemplo, uma gleba apresenta uma configuração ‘próxima’ ou ‘compatível’ com as configurações de regiões desertificadas”.

Meloni explica que a abordagem é muito parecida com a avaliação dos estados físicos da água (sólido, líquido e gasoso) ao longo da variação da temperatura a uma dada pressão. “É como ver o gelo derretendo e identificar a qual temperatura isso ocorreu. A região vegetada é o líquido, enquanto o deserto é o sólido. Não dá pra ver tudo o que acontece nessa mudança de estado, mas vemos o resultado final. A mesma coisa é com as mudanças catastróficas num ecossistema”.

Com outra analogia com o caso da água, o pesquisador diz que é como se a ação erosiva “esfriasse” o sistema até a sua solidificação. “No caso dos ecossistemas, a degradação altera a configuração da vegetação e compromete a manutenção ecológica, que finalmente colapsa”.

Como no caso da água, afirma o pesquisador, a cobertura da vegetação e a densidade de manchas de vegetação espalhadas na região assumiram o papel das variáveis termodinâmicas. “Dessa forma, foi possível utilizar todo um ferramental já consolidado em outras áreas do conhecimento e com isso identificar sob quais condições as mudanças de estado ocorrem para esses sistemas ecológicos. A partir dessas informações, é possível estabelecer relações de causa e efeito mais precisas e, principalmente, medir o risco de as mudanças de estado acontecer”.

Mudança de paradigma

Outra conclusão, segundo os pesquisadores é que a cobertura vegetal é o mais simples e eficiente indicador das mudanças do regime ecológico. “Essa é uma mudança de paradigma, pois antes se dava pouca importância à cobertura vegetacional, como se ela não se relacionasse com essas mudanças. Nosso estudo demonstrou exatamente o contrário”, diz Meloni.

Além disso, diz, os resultados também unificam duas abordagens aparentemente conflitantes sobre o tema. A análise preditiva do risco de desertificação é eficaz e a estratégia introduzida por esta pesquisa permite avaliar áreas maiores, e a um custo muito menor, porque pode ser feita remotamente. “Nossos métodos provêm suporte para decisões mais inteligentes e rápidas sobre o risco de desertificação, permitindo que as ações sejam mais baratas e eficazes”, afirma.

Os pesquisadores destacam que a metodologia proposta poderia ser explorada também em uma gama de outros problemas e contextos, tais como a disposição de recursos pesqueiros e extrativistas, a degradação de pastagens, etc. “Além dos baixos custos, outros possíveis ganhos incluem o poder preditivo, a rapidez na tomada de decisões e a eficácia das ações de manejo”.

Complexidade dos ecossistemas

Os desertos surgem, diz Meloni, de áreas previamente vegetadas, que sofreram mudanças bruscas em seu regime ecológico. Nas zonas semiáridas, por exemplo, a vegetação não é contínua, é organizada em pequenas ilhas, ou manchas de vegetação, que ficam isoladas umas das outras, cercadas por regiões sem vegetação, os chamados solos expostos, que pouco contribuem para a vida, e ficam expostas à ação dos agentes erosivos. “Quando a densidade vegetacional é baixa, o vento carrega nutrientes e sedimentos das pequenas ilhas de vegetação para longe, e a chuva, que é rara, cai de forma concentrada, em curtos intervalos de tempo, gerando enxurradas de grande energia”.

Segundo o pesquisador, essa estrutura espacial do semiárido afeta a dinâmica ecológica por interferir nos aspectos erosivos. “Já há algum tempo que se criou uma expectativa sobre como se poderia organizar as informações das manchas vegetacionais e do solo exposto, características do semiárido, para indicar o risco de desertificação. Contudo, faltava a interpretação adequada do problema”.

Ecossistemas naturais, como florestas, rios e lagos, não são estáticos, mas pulsam em resposta a processos biológicos, ecológicos e geoquímicos, tais como os ciclos de nascimentos e mortes, a transferência e ciclagem de nutrientes, dentre tantos outros. Esses processos renovam os recursos disponíveis para os organismos, e permitem não só a manutenção dos ecossistemas, como também que eles exibam uma capacidade de “reparo de danos”.

Isso significa que cada ecossistema é capaz de suportar algum nível de perturbação, sem que sua estrutura básica e funcionamento sofram mudanças importantes. Mas o pesquisador lembra que essa capacidade de recuperação apresenta limites. Uma vez que esse limiar é atingido, a resiliência do ecossistema diminui drasticamente, e pequenos níveis de perturbação passam a afetar enormemente a estrutura e funcionamento dos ecossistemas.

Sob tais condições, completa o pesquisador, a dinâmica ecológica é afetada, levando ao colapso dos ciclos e processos que mantém o ecossistema, as chamadas mudanças catastróficas. “Os limiares exatos do colapso de cada ecossistema são pouco conhecidos pela ciência, mas seus resultados fazem parte do cotidiano das ações ambientais. Por essa razão, pode-se dizer que nossa metodologia dá um passo importante na direção de prever esses eventos”.

Os exemplos mais emblemáticos de mudanças catastróficas são a eutrofização de lagos, que secam pelo acúmulo de sedimentos no leito; a savanização de florestas tropicais, conversão de florestas em savanas ou campos; e a desertificação de zonas áridas e semiáridas, ou seja, a formação de desertos.  Meloni afirma que “as evidências mostram que as causas das mudanças catastróficas podem ser naturais, mas que são enormemente aceleradas pela ação humana e pelos, cada vez mais comuns, eventos climáticos extremos”.

O colapso ecossistêmico faz com que um novo ponto de equilíbrio surja, de maneira que o antigo ecossistema se transforme em um “novo” tipo de ecossistema. Essa “nova” organização tende a apresentar níveis de complexidade ecológica menores, e o impacto ambiental é grande. “Em geral, há perda da dinâmica ecológica e da biomassa acumulada, mudanças nos padrões de diversidade e diminuição dos serviços ecossistêmicos. Reverter tais mudanças é difícil, quase sempre inviável, ou até mesmo impossível. Portanto, a melhor estratégia de conservação baseia-se na predição e prevenção de tais eventos”.

Meloni lembra que prever as mudanças de regime com exatidão, e determinar sob quais condições elas são mais propícias, continua sendo tema de grande debate. A desertificação, por exemplo, ocupa uma parte importante dos esforços mundiais relacionados ao tema, pois as mudanças climáticas ameaçam as zonas áridas e semiáridas de todo o mundo. “Pouca gente se dá conta, mas as zonas semiáridas ocupam 40% da parte terrestre do Planeta, onde vive aproximadamente um terço da população mundial. Essa população também é a porcentagem mais pobre, e muitos vivem de explorar terras secas e pouco férteis, o que aumenta ainda mais a pressão sobre os ecossistemas”.

Um exemplo, citado pelo pesquisador, é justamente as regiões Mediterrâneas, onde os desertos são resultados das condições climáticas e da exploração do solo por milênios. “Na Europa, também há relatos de uso massivo do solo desde antes do Império Romano, mas foi após a Revolução Industrial, principalmente, a partir do início do Século 19, que os desertos se expandiram e se multiplicaram naquele continente. Portanto, foi nessa região que encontramos as configurações possíveis desses sistemas”, finaliza Meloni.

O estudo, desenvolvido no Departamento de Física da FFCLRP, foi publicado na revista Physica A: Mechanical Statistics and Its Applications em Junho deste ano, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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