Não é de hoje que as reflexões de Aílton Krenak provocam intensas discussões e provocações aos pensadores convencionais. Líder indígena, pensador herdeiro dos saberes tradicionais e defensor dos direitos de seu povo, Ailton fala de um lugar onde os saberes ainda não foram colonizados e nem se renderam a materialidade eurocêntrica. Seu discurso transcrito carrega os potenciais da oralidade e estimula a reflexão para além das regras formais da escrita convencional e acadêmica. Tudo isso encontramos em seu pequeno e profundo livro intitulado “As ideias para adiar o fim do mundo” (2019) e na mais recente publicação intitulada “O amanhã não está à venda” (2020), ambos pela editora Companhia das Letras.
Ailton possui uma interpretação universal para todo tema que propõe analisar. Fala do Universo na sua totalidade, considerando a importância de todos os organismos e geografia da Terra como seres atuantes para prover a vida no Planeta. Estranha quem não reconheça que haja vida nas árvores, nos rios, nas montanhas, nos ventos. Possui uma visão de totalidade cósmica, porém sem se render a um misticismo vulgar. A natureza é sábia e Ailton sabe disso!
Seu trabalho evidencia a importância do saber milenar das culturas tradicionais e seu potencial para realizar a crítica da sociedade moderna, seja através dos costumes, seja na maneira de produzir conhecimento. Os saberes ocidentais segmentados dificultam a compreensão de um Organismo Terra em sua totalidade, essa segmentação faz com que um geógrafo não tenha nenhuma dúvida da importância de uma montanha e da mata para a formação das correntes atmosférica e umidade do ar, porém um economista convencional desconhece completamente essa informação, vendo naquela mata uma potencial área de plantio que sua ciência será muito eficiente em aproveitar os recursos produzidos naquele solo. Para Ailton, a montanha, a mata e o solo são todos integrantes do mesmo organismo e sabidamente equilibrados, a Terra nos provem a vida se soubermos respeitar o seu equilíbrio natural. O pensamento ocidental se considera avançado por não ter a menor compreensão da totalidade que há por “de fora da caverna”. A ciência ocidental possui um enorme saber e produziu importantes contribuições que devem ser defendidos em tempos de negacionismo, porém, conhece ainda muito pouco perto do todo existente no Universo.
Ailton questiona o antropocentrismo e o saber ocidental imposto pela chegada dos europeus, afirma categoricamente que a Terra não precisa do ser humano para existir, ao contrário de nós que não vivemos sem ela – quem seria o vírus destruidor do Planeta? A “civilização” moderna fez com que a humanidade abandonasse a pluralidade das vidas nesse Planeta. O homem não é o centro do Universo.
É tempo de conhecimento universal!
O autor relata o quanto abandonamos os vínculos profundos com a nossa memória ancestral de tal forma que perdemos a referência e o significado de nossa identidade. A “civilização” moderna produziu um distanciamento do homem da natureza, da terra, das experiências em comunidade. Abandonamos a importância da memória coletiva, das heranças culturais, das danças, das festas e das vivências sociais. Criamos uma sociedade de ausências, insensíveis para as experiências humanas afetivas, do canto, do brincar, da alegria. Isso se evidencia nos índices de insatisfação humana mesmo com tanto acesso a recursos materiais, nos elevados índices de transtornos psicológicos, suicídios e a busca inatingível por prazeres efêmeros, relacionados a esfera material, de consumos vazios de experimentações afetivas. Estamos cheios de vazios!
A sociedade moderna, capitalista, transformou homens em consumidores, uma sociedade que produz mercadorias sem respeitar os limites físicos do Planeta. Vivemos em um período do Antropoceno enquanto resultado inconsequente das ações humanas, ainda que sob a crença de que temos capacidade de conhecer e controlar os desequilíbrios ambientais. O individualismo potencializado pela sociedade capitalista fez surgir um modelo de “civilização” doentia que só pensa em si, excludente, que destrói todas as demais formas de vida no universo. O narcisismo na sua forma social, se é que podemos definir assim.
Nossa sociedade transformou a natureza em recursos e distanciou o homem da natureza levando ao limite o processo de coisificação humana. Fizemos da criatividade humana uma ferramenta a serviço da técnica, subjugados, transformamos o saber em coisa a serviço da produção de coisas, de mercadorias. Não há alternativa a não ser for recuperar a importância humana do Universo em sua totalidade. Recuperar o prazer nos prazeres, naquilo que naturalmente desperta nossos sentidos, nossos afetos e emoções, que estimula nosso imaginário, que valoriza a nossa inocência hoje subjugada.
Esse modelo de sociedade se mostra insustentável e se quisermos adiar o fim necessitamos iluminar o início! Pra ir adiante é preciso retomar a memória da estrada. Sentir o nosso povo, nossa tradição, nossa identidade. Dar voz a nossa memória, reencontrar com o Ser que habita o nosso imaginário coletivo tão ofuscado pelos tempos de modernidade individualista, neoliberal, principalmente em um momento de avanço do obscurantismo e da negação dos saberes ancestrais e científicos. É preciso retornar para dentro de nós, cruzar o deserto de vazios, ampliar os horizontes da existência. Essa a caminhada deve ser ultrapassada coletivamente. É preciso ouvir o cerrado, experimentar o sabor do chão, o sal da terra, o pó que sedimenta as estruturas do nosso Ser tão humano. O sertão de Guimarães. Provar o pó, os pães, as diferentes opiniões!
A cultura nos une! A arte está nos mantendo vivos!
Créditos:
Alex Hotz || Economista (PUC/SP). Professor universitário e pesquisador do Núcleo de Economia Política da FMU/SP