Rastreabilidade dos produtos é chave vital na luta contra crime organizado
por Jorge Pontes *
Nossos últimos olhares para a macrocriminalidade política e econômica que ocorre em nosso país nos autorizam a afirmar que enfrentamos a figura da delinquência institucionalizada, que se consubstancia em uma morfologia criminosa situada em escalas muito superiores a qualquer estrutura de crime organizado “tipo máfia”. Essa modalidade delituosa é mais destrutiva e perigosa para a economia, para os anseios da sociedade, e, sobretudo, muito mais difícil de ser enfrentada do que qualquer facção criminosa violenta, envolvida com o tráfico de drogas ou de armas.
O crime organizado, quando busca a facilitação das rotas de contrabando ou descaminho para seus produtos ilegais, suborna fiscais individualmente, em estradas, portos, aeroportos e áreas de fronteiras. Trata-se da ação de criminosos situados à margem da lei, isto é, da titularidade de “marginais”. Já o crime institucionalizado, com suas raízes fincadas e desenvolvidas na oficialidade das instituições públicas e ministérios — munido da caneta e do Diário Oficial — dispensa o pagamento de propinas no varejo, lançando mão da odiosa figura da corrupção normativa, que cria regras oficiais, ou as suprime, extinguindo ou enfraquecendo arcabouços da fiscalização, sempre em favor de esquemas de sonegação, falsificação, pirataria e de todo tipo de fraude.
A criminalidade institucionalizada — como se apresenta em nossos dias — tem o poder de comprometer frontalmente o projeto nacional, desestimulando o empreendedorismo, causando a queda da competência empresarial, o decréscimo do nível real de competitividade, o crescimento econômico artificial, a fuga de investimentos estrangeiros e a consequente diminuição da arrecadação. Isso sem falar na contaminação dos mercados, pois muitas empresas sérias e dispostas a funcionar sem vícios têm a impressão de que se não aderirem aos esquemas ficarão sem espaço e oportunidades contratuais.
Diante desse cenário, não há nada mais relevante, para as agências estatais de investigação, do que o emprego de alta tecnologia na elucidação dos crimes. A assinalação da materialidade e autoria de delitos como tráfico de madeira e contrabando de ouro, por exemplo, vem consolidando a figura do “follow the product”, que nada mais é do que a capacidade de rastrear origens e envolvidos com os produtos da delinquência, isto é, a própria rastreabilidade.
O Brasil precisa avançar neste sentido. A Receita Federal realizará nos próximos dias uma audiência pública para discutir o Programa Rota Brasil — que tem como objetivo a coleta de elementos para o restabelecimento dos controles sistêmicos de produção, circulação e rastreabilidade dos produtos, com foco especial no setor de bebidas. O que está em jogo neste momento é a titularidade do Estado Brasileiro na realização (ou não) do controle de importantes produtos disponibilizados no nosso mercado interno.
É imperioso termos em mente que a ausência de controle cria uma zona cega, a partir da qual é gerada e fomentada uma enorme gama de ilícitos, iniciando pela sonegação, passando pela adulteração e falsificação, até chegar à lavagem de dinheiro das facções criminosas. Trata-se de um buraco negro que atrai e potencializa todo tipo de irregularidades, algumas que atentam, inclusive, contra a saúde pública.
E a atual ausência de uma sistemática ativa de controle diminui substancialmente a capacidade dos estados de obterem dados confiáveis, acarretando enormes danos à economia e à sociedade como um todo, gerando prejuízos inimagináveis aos cofres públicos. Somente o setor de combustíveis, por exemplo, é alvo de R$ 14 bilhões em sonegação e R$ 15 bilhões em adulteração e outras fraudes. Como bem colocou Emerson Kapaz, CEO do Instituto Combustível Legal, em recente reunião do Conselho Desenvolvimento Econômico Sustentável Social, CDESS, mais conhecido como Conselhão: “competir no mercado não é problema para as empresas sérias, a questão é concorrer com quem não paga”. De fato, trata-se de algo insustentável, que consolida a nossa nefanda injustiça tributária.
Se olharmos para o mercado de bebidas, também veremos números assustadores: segundo relatório recente da Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF), o Brasil contabilizou aproximadamente R$ 38 bilhões em perda fiscal com o comércio ilegal do mercado de bebidas no ano de 2020.
O que se busca nesse momento, com o Rota Brasil, é, acima de tudo, o restabelecimento do efetivo controle fiscal por parte do Estado — excluindo-se totalmente a possibilidade de coparticipação (no sistema) da indústria fiscalizada, o que está em total harmonia e alinhamento com os preceitos consignadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
E, por derradeiro, assim como para enfrentarmos à lavagem de dinheiro não podemos prescindir do Estado para operarmos o “follow the money”, pois para tal existe um concerto de ações oficiais levadas a efeito por instituições como Banco Central, Receita Federal, CARF, Polícia Federal e Coaf, entre outros, definitivamente não há como concebermos o “follow the product” sem a firme e exclusiva atuação governamental. Repassar essa obrigação — o ônus do controle fiscalizatório — para o próprio contribuinte seria, como já dissemos, vulnerabilizar o sistema.
Jorge Pontes | Delegado da Polícia Federal que idealizou e instalou a unidade de repressão aos crimes ambientais na instituição. É autor do livro Guerreiros da Natureza – A História do Combate aos Crimes Ambientais na Polícia Federal