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Crise ou nova época?

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Arthur Soffiati

A expressão Antropoceno está sendo usada de forma indiscriminada. Seu emprego aumenta dia a dia. Já se tornou moda, assim como desenvolvimento sustentável ou sustentabilidade. Houve uma época em que tentei domesticar conceitos, exigindo que as pessoas os empregassem de forma rigorosa. Todos os meus esforços nesse sentido foram inúteis. Ingenuidade minha pensar que se pode exigir das pessoas o uso correto de conceitos. Contentei-me, então, em utilizá-los como os entendo. Se todo mundo pode fazer uso de conceitos como bem entende, posso empregá-los segundo meu entendimento.

Isabelle Stenger mostra, de forma convincente, que uma das tendências do conhecimento é a transdisciplinaridade. A excessiva especialização das ciências esbarrou em limites que não permitem mais compreender os objetos estudados sem recorrer a outros campos científicos. Está havendo uma luta entre a monodisciplinaridade altamente especializada e a transdisciplinaridade. Daí, certos conceitos transitam de um campo do conhecimento a outro (“D’une science à l’autre: des concepts nomades”. Paris: Du Seuil, 1987). 

Mas atenção: o aproveitamento de conceitos formulados no âmago de um campo científico por outro exige rigor. Pode-se utilizar o conceito de sistema, que é bem maleável, em vários campos do conhecimento. Essa transferência é mais problemática com conceitos formulados no interior da geologia e da paleontologia. Holoceno é um deles. Ele foi proposto em 1850 pelo paleontólogo francês Paul Gervais. A palavra resulta da combinação de holos (todo ou inteiro) e kainos (novo), adquirindo o significado de “inteiramente recente”.

Para a arrogante ciência ocidental, o conceito pegou bem. Estamos vivendo numa época inteiramente recente. Com ele, parece que temos uma Terra, um clima, uma flora e uma fauna inteiramente novos. O mundo foi recriado. Mas os geólogos e paleontólogos sabem que não. Eles sabem que o Holoceno é uma extensão do Pleistoceno, época anterior à atual, formando com ela o período Quaternário.  A rigor, tenho dúvidas mesmo se podemos confiar tanto numa nova época para lhe darmos um nome próprio. O Pleistoceno foi marcado por períodos glaciais com intervalos. Ocorreram quatro momentos muito frios com momentos intermediários quentes. Nos frios, o nível do mar baixava porque as águas eram chupadas em grande parte pelas geleiras. Nos quentes, o nível do mar subia porque as geleiras derretiam e liberavam água para os oceanos.

As quatro geleiras receberam nomes próprios. As fases intermediárias foram batizadas com os nomes da geleira anterior e da posterior. Nenhuma ganhou nome próprio, a não ser a fase posterior à última glaciação, que foi entendida como nova época da história da Terra e mereceu o pomposo nome de Holoceno. Estaríamos no intervalo entre duas glaciações ou numa época “inteiramente” nova? Caso estejamos numa nova época, e não num intervalo entre a última e uma possível nova glaciação, parece que, a esta altura, Antropoceno é conceito mais adequado para designar a fase que começou em torno de 12 mil anos passados porque, nela, grupos humanos domesticaram plantas e animais, criando a agricultura e a pecuária; inventaram a cestaria e a cerâmica; dominaram os metais e fabricaram fios com fibras de plantas e animais, possibilitando a tecelagem; inventaram os sistemas de escrita, construíram cidades; geraram crises ambientais locais e reversíveis; criaram o modo de produção capitalista; a Europa ocidental conectou o mundo todo com a expansão marítima, modernizou o sistema produtivo com a revolução industrial, aumentou o domínio da humanidade sobre a natureza com uma população cada vez mais crescente num mundo de desigualdades sociais. 

Enfim, gerou uma crise socioambiental inédita na história da Terra. Ocorreram já cinco arrasadoras crises ambientais naturais globais no planeta, mas não se tem notícia de que grupos humanos agindo coletivamente tenham produzido uma crise ao mesmo tempo global e antrópica. É a essa crise, cujas raízes situo no princípio do século XV europeu, que vem recebendo o nome de Antropoceno. Até mesmo alguns geólogos e paleontólogos sustentam que estamos entrando numa nova época. O Holoceno está sendo sucedido pelo Antropoceno sem intervalo, como acontece nas fases da história da terra. O que é o Antropoceno? Uma nova fase ou a transição de uma fase para outra? Na história da Terra, as transições não costumam ser batizadas como nomes próprios. 

Enfim, estamos empregando o conceito de Antropoceno de maneira inconsistente, sem nos importarmos em caracterizá-lo como nova época ou intervalo entre uma época e outra. Cientistas renomados, como Bruno Latour, a própria Isabelle Stenger, Eduardo Viveiros de Castro e outros, empregam-no sem explicitá-lo devidamente. E o conceito está sendo utilizado indiscriminadamente: urbanismo no Antropoceno; arquitetura no Antropoceno; pintura no Antropoceno; literatura no Antropoceno; o cotidiano no antropoceno. Para dificultar mais ainda o entendimento da crise ambiental da atualidade, outros autores querem marcar seus territórios com outros conceitos também inconsistentes, tais como capitaloceno, plantatioceno, eromoceno e negroceno. Outros mais devem ser criados para tornar ainda mais difícil a compreensão da crise ambiental atual. A vaidade é acentuada nos meios acadêmicos. Os pensadores se concentram no pensamento, mas não na ética. Então, acirra-se uma competição entre eles com o propósito de demonstrar quem pensa melhor. A realidade acaba sendo substituída por um aranhol de conceitos, como se eles adquirissem valor em si mesmos.

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