Arthur Soffiati |
É muito comum pessoas de mediano conhecimento e até mesmo de alta ilustração falarem, por exemplo, no “surgimento” do fogo, das ferramentas, da pintura rupestre, da agricultura, da metalurgia, da escrita, da cidade etc. Nenhum desses itens mencionados é um ser vivo que possa surgir na nossa frente de súbito. Todos eles foram construídos pelo trabalho humano coletivo. Portanto, não surgem como obra divina. A história humana começa a partir da construção do primeiro instrumento (até mesmo antes) e se estende aos dias de hoje, com o devido reconhecimento de descontinuidades. Daí, não ser sustentável a concepção de que a trajetória da humanidade se divide em pré-história e história, sendo o “surgimento” da escrita o marco divisório.
A cidade, por exemplo, é o desenvolvimento da aldeia neolítica (sociedade do tipo 2 ou B), associada à criação da agricultura e à sedentarização de grupos humanos. Com a cidade, fica mais definida a distinção de meio urbano e rural, se bem que, nas primeiras culturas do tipo 3 ou C (civilizações), campo e cidade tivessem fronteiras muito porosas. A cidade nasceu da divisão técnica, sexual, social e territorial do trabalho. Com a sedentarização e com cidade, emergem também os impactos ambientais.
A aldeia mantém as pessoas próximas umas das outras por mais tempo do que nos grupos de coletores, pescadores e caçadores, geralmente nômades (sociedades do tipo 1 ou A). Essa proximidade favorece o desenvolvimento de organismos patogênicos e transmissíveis pelo acúmulo de lixo orgânico (antes da revolução industrial). As cidades aumentaram o sedentarismo e a transmissão. Poucas civilizações desenvolveram cidades em ambientes abertos e acessíveis. Na Mesopotâmia, foi necessário drenar os brejos do complexo delta formado pelos rios Tigre e Eufrates. No Egito, o deserto teve de ser domesticado pela irrigação. No Camboja e na América Central, florestas tiveram de ser abatidas para dar lugar a grandes obras. Nos Andes, o frio foi enfrentado por meio de compensações.
As cidades da Europa ocidental eram semelhantes às de outras civilizações até a expansão do capitalismo no século XV. Elas se expandiram com o aumento da população, alimentada com recursos furtados dos continentes dominados. E a intensidade dos impactos ambientais aumentou. Pensemos no desmatamento da costa brasileira para obtenção do pau-brasil. Depois, na devastação progressiva da Mata Atlântica para o plantio de cana-de-açúcar e para a criação de gado. Lembremos da matança em larga escala de animais e na captura de pessoas para trabalharem escravizadas na América. Na Índia e na China, os hábitos tradicionais começaram a mudar com a instalação de colônias ocidentais. As condições climáticas, contudo, pareciam estáveis em todo o planeta. O excesso de água decorria dos alagamentos e do transbordamento dos rios causados pelas chuvas. Entendia-se que esses fenômenos eram regulares. Além do mais, havia florestas, que retinham águas pluviais, e rios mais profundos. Em vez de enchentes e estiagens, falava-se em cheias e secas.
Com a revolução industrial, produzida na Inglaterra em fins do século XVIII e progressivamente atingindo o mundo todo direta ou indiretamente, os impactos ambientais se tornaram muito mais potencializados. Mais florestas foram derrubadas. A erosão aumentou. O assoreamento dos rios se intensificou, acarretando transbordamentos mais frequentes. As cidades cresceram. O afluxo de pessoas aumentou a população urbana. A pavimentação das ruas tornou mais lento e difícil o escoamento de águas pluviais. Os leitos dos rios foram comprimidos por diques, verticalizando a área de escoamento hídrico. Os riscos de rompimento também aumentaram.
Todas essas modificações impactantes foram produzidas na superfície da Terra. Mas a economia de mercado não se restringiu ao solo, como também avançou pelo subsolo, pela superfície dos oceanos, no plano submarino e na atmosfera. Chegamos a um ponto em que não apenas o planeta que abriga a humanidade está ameaçado, como também a área espacial que o envolve também. O lixo espacial já se torna perigoso. A exploração de astros próximos da Terra é uma ameaça potencial para eles. No momento, o perigo mais premente é a alteração da camada de gases que asseguram o calor necessário para a vida no planeta. O acúmulo de emissões derivadas da queima de carbono está transformado o lenço protetor num edredom que aquece a Terra em demasia. Daí as alterações climáticas: elevação média das temperaturas; chuvas torrenciais e volumosas; estiagens prolongadas; incêndios inclementes; tempestades de vento devastadoras; derretimento de geleiras; ressacas destruidoras etc.
O problema da drenagem se agrava. Chuvas intensas aumentam a erosão, o assoreamento e os transbordamentos. A impermeabilização do ambiente urbano provoca alagamentos frequentes. O encharcamento do solo causa afloramento do lençol freático e o deslizamento de encostas. O chamado novo normal tem algo a ensinar ao Brasil? Claro que sim. Mas a ficha ainda não caiu para as autoridades governamentais.