Arthur Soffiati |
A Caatinga é um bioma brasileiro aparentemente árido. Ela é classificada como savana estépica, ou seja, um bioma seco, mas ainda com umidade suficiente para gerar uma vegetação arbustiva e arbórea. Em 1892, Saturnino de Brito, em seu primeiro trabalho como engenheiro, no Ceará, escreveu: “Em 1892 trabalhávamos na Estrada de Ferro Baturité […] estranha natureza: partimos em estação de plena seca, a percorrer aquelas ondulações de terreno áspero, cobertas de capoeiras pardacentas, tão secas as folhas das árvores, e voltamos em meio de ridentes paisagens de exuberante vegetação, encontrando a correr rios caudalosos, que antes passamos rigorosamente a pé enxuto. Extraordinária natureza.” (Francisco Saturnino Rodrigues de Brito. “As secas do norte”. Recife: Imprensa Industrial, 1913).
A Caatinga ocupa a totalidade do estado do Ceará e parte do território de Alagoas, Bahia, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe.
As principais características da vegetação da Caatinga são solo raso e pedregoso, árvores baixas, troncos tortuosos com espinhos e folhas que caem no período da seca (à exceção de algumas espécies, como o juazeiro). Destacam-se, nesse bioma, as seguintes espécies: bromélias, xique-xique, mandacaru, embiratanha, acácia, juazeiro, macambira, maniçoba, umbu e mimosa.
A fauna da Caatinga apresenta bastante diversificação, compreendendo 40 espécies de lagartos, 7 espécies de anfisbenídeos (espécies de lagartos sem pés), 45 espécies de serpentes, 4 de quelônios, 1 de jacaré, 44 de anfíbios anuros. Dos principais animais que pertencem a esse bioma, estão: ararinha-azul, sapo-cururu, onça-parda, macaco-prego, asa-branca, cotia, tatu-bola, sagui-do-nordeste, preá, tatu-peba, veado-catingueiro, sagui-do-nordeste, guigó-da-caatinga e jacaré-de-papo-amarelo.
Os ecossistemas do bioma Caatinga encontram-se bastante alterados, com a substituição de espécies vegetais nativas por cultivos e pastagens. O desmatamento e as queimadas são ainda práticas comuns no preparo da terra para a agropecuária que, além de destruir a cobertura vegetal, prejudicam a manutenção de populações da fauna silvestre, a qualidade da água e o equilíbrio do clima e do solo.
De acordo com o IBGE, 27 milhões de pessoas vivem atualmente no polígono das secas. A extração de madeira, a monocultura da cana-de-açúcar e a pecuária nas grandes propriedades (latifúndios) deram origem à exploração econômica. Na região da Caatinga, ainda é praticada a agricultura de sequeiro, que é uma técnica para cultivo em terras extremamente secas.
Os órgãos ambientais do setor federal estimam que mais de 46% da área da Caatinga já foi desmatada e é considerada ameaçada de extinção. Vale ressaltar que muitas espécies são endêmicas desse bioma, ou seja, ocorrem apenas lá.
Mesmo assim, originalmente, plantas e animais sustentavam a população nativa e até mesmo os colonos de origem europeia ou mestiços que se instalaram no grande bioma. Ele não pode ser comparado com a Amazônia ou a Mata Atlântica na oferta de alimentos, mas as pessoas não morriam de fome e de sede. Havia pobreza com dignidade, distintamente do que ocorre atualmente. Quanto mais a exploração da Caatinga avança mais pobre ela se torna.
Ana Rita Dantas Suassuna mostra como o sertanejo da Caatinga produzia alimentos com os aparentes parcos recursos do ambiente. No receituário que ela colheu, incluem-se bolos e biscoitos, papas e mingaus, rapadura, mel de rapadura e de abelha, doces, alimentos de milho, pão, cuscuz, tapioca, feijão, aves, cágado, jabuti, paturi, mocó, preá, rã, tatu, galinha, carne de sol, linguiça, cabrito, carneiro, buchada de bode, porco, peixes, pirão, farofa, arroz, legumes. Variedade bem maior e nutritiva que atualmente (“Gastronomia sertaneja”. São Paulo: Melhoramentos, 2010).
A Mata Atlântica é uma floresta tropical singular. A combinação da floresta com o relevo dotou a Mata Atlântica de uma exuberância ímpar. Em seu aspecto ombrófilo, trata-se de uma floresta úmida e verde o ano inteiro. Em seu aspecto decidual ou semidecidual, ela perde entre 20% e 80% das folhas. Sua diversidade florística e faunística garantia alimentação farta e permanente durante o ano inteiro. Mas dentro de uma economia de subsistência. A economia de mercado transformou a própria floresta e o solo que ela revestia em bens lucrativos. A extração do pau-brasil para tingimento de tecidos foi o primeiro golpe que ela sofreu. Logo em seguida, veio a cana-de-açúcar, que exigiu a devastação de grande parte dela. Na sequência, a extração de minérios, a plantação de café, a pecuária e outros cultivos reduziram a portentosa Mata Atlântica a melancólicos 12% de sua extensão original. E o desmatamento continua. Cidades de todos os portes se instalaram no seu domínio. Hoje, nem mesmo a água dos rios que a irrigam conseguem abastecer os núcleos urbanos, pois está poluída, barrada e escassa.
Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos escreveram um livro fundamental sobre a alimentação e a culinária no bioma da Mata Atlântica: “A culinária caipira da paulistânia: a história e as receitas de um modo antigo de comer” (São Paulo: Fósforo, 2021). Paulistânia, segundo os autores, é um vasto território correspondente hoje aos estados de São Paulo, interior do Rio de Janeiro e Espírito Santo, Minas Gerais, com penetração no Centro-Oeste e no Sul. A culinária que se desenvolveu na Paulistânia deve muito à contribuição dos guaranis. É a conhecida e progressivamente abandonada comida caipira. “À diferença do Nordeste monocultor, a economia que se expande a partir de São Vicente, que ganha o planalto paulista e que avança sertão adentro, não constituirá a grande lavoura nem reunirá grandes plantéis de escravizados, limitando-se, no que toca ao negro, à ‘escravidão miúda’, se comparada com a Bahia ou Pernambuco.”
Trata-se de uma produção de subsistência rica e variada com base no milho, na mandioca, nas frutas silvestres, na farinha, no leite, na banha, nas aves e no porco. O receituário é variado: conservas, carne defumada, marmelada, goiabada, bananada, doce de abóbora, laranjada, buritizada, geleias, compotas, frutas passificadas e cristalizadas, licores, refogados etc. É um receituário em que quase tudo era aproveitado. A coleta, a pesca e a caça desempenham um papel grande nessa alimentação. As atividades extrativistas respeitavam limites de reprodução no início, até porque a relação entre população e natureza exercia pouca pressão sobre os recursos fornecidos pelos ecossistemas.
Além do mais, era uma alimentação saudável, na medida em que não entravam nela insumos químicos. Era também ecologicamente sustentável até certo tempo. Depois, começou a extrapolar limites. Hoje, essa alimentação vive na memória de pessoas idosas que ainda a praticam. Os supermercados a substituíram. Os caipiras começaram a desaparecer com os romances de Monteiro Lobato.
Ainda no domínio atlântico do Nordeste, a influência africana foi muito acentuada entre Bahia e Pernambuco. Foram introduzidos muitos africanos escravizados nesse trecho da costa brasileira por conta do cultivo de cana e da fabricação de açúcar. Era de esperar que os africanos trouxessem sua culinária para o Brasil, adaptando-a ao novo ambiente. Abadá, Abarém, Acarajé, Bobó, Caruru, Mungunzá, Quibebe, Vatapá são pratos já incorporados à culinária brasileira (Mariana de Castro Pareja Galves. “A culinária africana no Brasil”. Votorantim: edição do autor, 2017). Na doçaria, também foi grande a influência africana. Doces como aponon, cocadas, queijadas, baba-de-moça. Bombucado, quindim, bolo de iaiá, pé-de-moleque, pé-de-moça, quebra-queixo, mãe benta, beiju, canjica, pamonha, cuscuz são bem conhecidos. Vários deles provêm de Portugal, ganhando toque e nomes africanos (Guilherme Radel. “A doçaria da Bahia”. Salvador, 2014).
Sobre a doçaria tradicional da zona da mata nordestina, Gilberto Freyre lhe dedicou um livro, mostrando a influência portuguesa. Integram a lista as argolinhas de amor, beijos, biscoitos, bolos, broas, canjica, charutos, ciúmes, colchão de noiva, filhós, sequilhos, suspiros, tapioca, tijelinha, baba de moça, fatia parida, lacinho de amor, sonhos, suspiros. A influência africana e indígena se faz sentir num receituário com insinuações sexuais (Gilberto Freyre. “Assucar”. Rio de Janeiro: José Olympio, 1939).