Marina Silva | Foi Ministra do Meio Ambiente (2003-2008), Senadora (1995-2011), Fundadora da Rede Sustentabilidade
Os fatos indicam, a ciência evidencia, a ética denuncia: o modelo de governança multilateral vigente não está dando conta de enfrentar os desafios da crise ambiental global. É verdade que tivemos alguns avanços, nos últimos anos.
Exemplos: o carvão mineral já não é tão competitivo, a energia eólica e solar ganhou espaço em lugares como Austrália, Norte da Europa, China e Índia, a eletricidade e o compartilhamento de viagens estão redefinindo o transporte em várias cidades. Mas o caos climático continua.
Essas mudanças, embora importantes, são insuficientes, não têm a escala nem o alcance geográfico e demográfico necessários. São exemplos de soluções que já existem, mas não são levadas à prática em todo o planeta por falta de compromisso ético, especialmente dos dirigentes políticos.
E a situação se agrava: ainda é possível reduzir as emissões de CO2 para manter o aquecimento global abaixo de 2°C, mas a possibilidade de manter abaixo dos 1,5°C, que é o ideal, está se esvaindo a cada dia.
Mais uma vez, vou repetir: preservar as condições que sustentam a vida na Terra não é coisa de direita ou de esquerda, de rico ou de pobre; é coisa de ser humano. Todos, de qualquer classe social ou ideologia, precisam de terra fértil, água potável e ar puro.
É por isso que um modelo sustentável de desenvolvimento não é apenas uma definição econômica, um modo de produzir e consumir com menor impacto sobre o Planeta. É, sobretudo, um ideal de sociedade orientado por um imperativo ético: em nossas relações – uns com os outros e com a natureza– respeitar a dignidade de todas as espécies vivas e buscar vida abundante, relevante e significativa para a espécie humana.
Medindo os esforços feitos e os resultados alcançados, na situação de emergência no planeta, ainda estamos longe, muito longe, de traduzir esse ideal na prática dos governos, das empresas e no cotidiano de nossas sociedades.
Todos parecem estar letárgicos, mesmo diante dos desastres que já se intensificam e se agravam, como mostra a catástrofe ambiental que assolou Moçambique, Zimbábue e Malaui. É como se a velha luta descrita por várias tradições e culturas, sintetizada por Freud no confronto entre pulsão de vida e pulsão de morte, estivesse se resolvendo numa vitória permanente desta última.
Mas a permanência da pulsão de morte não escapa à insistência da pulsão de vida. Uma nova força emerge, num fenômeno político e social atípico e totalmente novo na história da espécie humana: em diversas partes do mundo, crianças se mobilizam, protestam e exigem ações para combater o aquecimento do Planeta.
Os adultos, repetindo o estigma bíblico da “geração corrupta”, mantêm-se acomodados e embevecidos com o sucesso de suas máquinas de ganhar dinheiro e poder em prejuízo da vida.
As crianças se levantam, como se um alarme biológico as avisasse de que o modelo colapsado – mas ainda vigente – de desenvolvimento está ameaçando retirar-lhes qualquer possibilidade de futuro.
A história humana registra revoltas de escravos, levantes de colonizados, resistência de povos e etnias, movimentos de camponeses, greves de trabalhadores urbanos e todos os tipos de guerras e revoluções. Mas não conheço, em tempos antigos ou modernos, um movimento de crianças e ocorrendo em tantos países.
Lideradas pela ativista adolescente Greta Thunberg, milhares de crianças iniciaram um movimento internacional pelo clima. No dia 15 deste mês (Março), foram às ruas nas cidades de vários continentes em manifestações convocadas por um grupo de adolescentes e crianças, principalmente meninas.
A contradição na humanidade fica clara: enquanto o sistema já consolidado, mas em decadência, lança mão do que há de mais retrógrado para tentar sobreviver, como se vê no ciclone reacionário que se levanta, cujos expoentes são Trump e Bolsonaro, uma nova esperança, que precisa florescer e dar frutos, está lançando mão do futuro, do recurso mais avançado e poderoso de qualquer sociedade, suas crianças.
Nem o Conselho de Segurança da ONU consegue tomar medidas efetivas para proteger e dar segurança à vida no Planeta. Mas a vida sempre busca a vida – e tenta se proteger através de seu agente aparentemente mais frágil. É como um indicador biossocial de que a humanidade se enredou num desvio civilizatório que favorece a pulsão de morte. É um levante da vida, um grito do futuro.
E vejam se não é mesmo de tirar o sono das crianças: só nos restam 12 anos para tentar impedir que o Planeta aqueça mais do que 1,5 graus Celsius. Segundo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), mesmo que todos os países do mundo venham a efetivar seus compromissos no Acordo de Paris, o aquecimento global pode chegar a 3°C até o final do século.
Sequer conseguirmos esse consenso global e há países que, além de não aderirem, estão atuando contra o Acordo. O resultado pode ser catastrófico para a humanidade e todas as formas de vida.
As crianças vêm em nosso socorro. Saem de suas escolas para ensinar – a governos, empresas e a todos os adultos – o bê-á-bá do cuidado com a vida: não poluir o ar que respiramos, não envenenar a água que bebemos, não enfraquecer a terra que nos nutre e, sobretudo, não romper o laço social que nos caracteriza como humanos, capazes de legar aos nossos filhos o tesouro da vida.