* Por Arthur Soffiati
No fim de outubro de 2024, ocorre o que está sendo considerada a maior e mais grave tempestade da Espanha no século XXI. Faltam ainda 76 anos para ingressarmos no século XXII. É cedo para avaliações. Muitos desastres ambientais ainda podem ocorrer na Península Ibérica e provavelmente ocorrerão. Da maneira em que as temperaturas se elevam, podemos esperar mais evaporação de água, sobretudo dos oceanos; derretimento das geleiras, liberando correntes frias; encontro de correntes frias com correntes quentes cheias de vapor d’água e tempestades.
Tenho por hipótese que o deserto do Saara avança pelo Península Ibérica. O sul da Europa tem sido atingido por queimadas cada vez mais intensas em face das secas. Os rios ibéricos também sofrem drástica redução de vazões agravadas pelo excesso de barragens.
Agora, a região de Valência, no leste da Espanha, sofre uma devastadora tempestade causada por uma DANA, abreviatura de um fenômeno meteorológico conhecido como Depresión Aislada en Niveles Altos (Depressão Isolada em Altos Níveis). É também conhecida como gota fria. Foi mais que uma gota. Foi o despejo de um caminhão pipa num dedal. Toda a chuva prevista para um ano caiu em um dia e matou mais de 150 pessoas. E mais mortos devem aparecer, pois muitas pessoas estão desaparecidas.
E, novamente, a maior parte dos jornais se fixa nos dramas pessoais, entrevistando os atingidos. Eles não sabem a quem responsabilizar. Dizem que o governo espanhol envio mensagens para os celulares tarde demais. É verdade. Mas é preciso examinar mais as condições que favoreceram um desastre climático que, em 24 horas, matou proporcionalmente mais pessoas que um mês nas copiosas chuvas de maio de 2024 no Rio Grande do Sul.
Primeiro, consideremos que a megaurbanização de Valência, às margens do Mediterrâneo, começa no nível do mar e sobe por montanhas muito próximas. Trata-se da zona serrana de Utiel. Dela, descem rios em direção ao Mediterrâneo, como os Magre e Turia. Eles foram canalizados no baixo curso para que o meio urbano ganhasse espaço com a domesticação das águas. Em outras palavras, os rios perderam seus meandros e sua área de expansão. A vegetação nativa também é escassa. Tem-se, então, uma combinação perigosa: montanhas perto do mar+planície costeira+falta de vegetação retentora de chuvas+rios retilinizados e estreitados+urbanização excessiva. Está formado o cenário para o desastre. Então, uma forte massa fria proveniente do Ártico se encontra com uma massa quente carregada de muita água evaporada do mar. O resultado é o resfriamento do vapor, que se transforma em chuva torrencial sobre um meio favorável a desastre.
Falou-se em tempestades parecidas em 1957 e 1962 no mesmo local. A gota fria é um fenômeno natural. Acontece que ele está se tornando cada vez mais destruidor pela ação da economia de mercado no mundo. Costumamos dizer que esses fenômenos só são mortais em áreas pobres do mundo. Agora, eles estão chegando aos ricos e afetando a própria economia que os criou.
* Arthur Soffiati é professor associado da Universidade Federal Fluminense aposentado