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De volta ao futuro da distopia ou o enigma do sorriso de Mona Lisa?

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Roberto P. Guimarães | Ph.D., Presidente, Comité Diretor de IfE – Initiative for Equality (UN ECOSOC Special Consultative Status)

“Não podemos prever o futuro, mas podemos inventá-lo.” – Charles Birch

O pensamento de Max Weber parece reforçar a frase atribuída ao ecólogo e geneticista australiano Charles Birch. Se, de fato, “a história ensina-nos que homem não teria alcançado o possível se, muitas vezes, não tivesse tentado o impossível”, o momento histórico de pandemia parece propício para projetar o que até a pouco constituiria um delírio, o sonho impossível de uma civilização fundada na ética e na solidariedade ecossistêmica entre os componentes bióticos e abióticos da Natureza.

A eclosão da pandemia provocada pelo “novo” Coronavírus (na verdade, uma nova e mais agressiva mutação do Corona) coloca, uma vez mais, o protagonismo de ao menos dois cenários extremos possíveis para a sobrevivência da vida no Planeta. De um lado, o retorno a uma distopia de sociedades confinadas no isolamento doméstico, sem vínculos de sociabilidade e com o predomínio de trabalhos braçais, terceirizados, subalternos e absolutamente precarizados em matéria de redes de proteção social como as que caracterizaram a evolução da humanidade no último século. No extremo oposto, poderemos ser testemunhas do renascimento de uma sociedade verdadeiramente ambiental, social e eticamente sustentável como a que preconiza a agenda internacional desde a publicação do Nosso Futuro Comum, em 1986. 

A viagem de volta à distopia de uma sociedade fragmentada e desprovida de humanidade pode parecer a mais provável, em especial à luz da experiência histórica passada. 

De fato, desde 18 de Março, quando eclodiu a pandemia, enquanto 42,6 milhões de trabalhadores solicitaram auxílio-desemprego, a riqueza dos 1 por cento de bilionários norte-americanos viram a sua riqueza acrescida em mais de US$ 565 bilhões. Como resultado dessa dinâmica perversa no nível mundial, apenas 26 bilionários acumulam uma riqueza superior à metade mais pobre da humanidade. Esta realidade certamente subjazem à iniciativa de um grupo de cerca de 80 milionários dos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, Nova Zelândia, Canadá e Holanda ao assinar uma carta urgindo os governos a que os tributem mais para pagar pela crise do coronavírus. “Pedimos aos nossos governos que aumentem impostos sobre pessoas como nós. Imediatamente. Substancialmente. Permanentemente”. A Espanha já avançou nessa direção ao aprovar uma “renda mínima vital” de mais de mil Euros mensais para perto de um milhão de famílias. Como um complemento fundamental dessa lógica extra-mercado, o Chile também avança no estabelecimento de diversas formas e instrumentos de taxação de grandes fortunas, heranças e dividendos.

De acordo com o IBGE, o primeiro trimestre de 2020 culminou com quase 13 milhões de desempregados, duplicando a taxa de desocupação de 2014, enquanto a eufemisticamente chamada “informalidade” (a parcela precarizada do trabalho sem proteção social) atingiu cerca de 40 milhões de trabalhadores, praticamente 40 por cento da força de trabalho, levando a que menos da metade da população economicamente ativa tenha acesso a postos de trabalho. 

O documento oficial apresentado pelo Brasil à Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (RIO-92) já assinalava que “em situações de extrema pobreza, o indivíduo marginalizado da sociedade e da economia nacional não tem nenhum compromisso para evitar a degradação ambiental, uma vez que a sociedade não impede sua própria degradação como pessoa”. Fazendo eco ao consenso mundial sobre esse aspecto, a própria Resolução 44/228 das Nações Unidas que convocou a RIO-92 afirmava com inusitada clareza que “pobreza e degradação ambiental encontram-se intimamente relacionadas”.

A solidariedade na oferta de serviços sociais revela-se antitética à lógica privatista do mercado, como comprovam as 265 cidades no mundo que reverteram a privatização da oferta de água potável e de esgoto, ou os mais de 87 por cento de Manauaras que carecem de acesso esgoto duas décadas depois de privatizar com a promessa da universalização do serviço em Manaus.

Já no cenário pós-COVID mais otimista, seria inaugurado um novo modelo de organização social e de acumulação que, em bases solidárias e de afetividade, permitiria superar diversas forças motrizes da globalização atual. Desde a distópica mercantilização da Natureza e dos seres humanos que levou a uma sorte de “uberização” geral do Planeta e à transformação de cidadãos em meros robôs do consumo online sem qualquer relação com as suas necessidades, individuais e coletivas, de sobrevivência material, espiritual e de materialização de uma ética verdadeiramente planetária e entre gerações.

A emergência da nova “economia do conhecimento” permite, no entanto, tentar colocar em prática um truísmo das últimas décadas, o fato de que o futuro de nossas economias, de fato de nossas sociedades, passa necessariamente pelas capacidades de transformação baseadas na exploração do conhecimento acima de mercadorias ou serviços. A nova economia do conhecimento requer, no entanto, o fortalecimento tanto dos bens públicos como dos bens comuns. O que os define é o fato de que o consumo desses bens por um indivíduo não diminui a disponibilidade do mesmo aos demais. O que eu “consumo”, por exemplo, de segurança pública não diminui a disponibilidade de segurança para todos, enquanto que o consumo individual de um território ou de sua cobertura vegetal diminui o estoque para consumo de terceiros.

Um Norte como o proposto outorga, entre outros, à bioeconomia, o protagonismo entre as vias de superação da disjuntiva atual por meio de duas alternativas, seja pela mimetização de ecossistemas, produtos e serviços da Natureza em processos tecnológicos e produtivos, seja pela incorporação dos serviços ambientais nos cálculos e decisões de alocação de recursos produtivos. A título de ilustração, as plantas da Amazônia contêm segredos bioquímicos, como novas moléculas, enzimas, antibióticos e fungicidas naturais, que podem ser sintetizados em laboratório e resultar em produtos de valor agregado. 

No médio e longo prazo isto poderia representar um novo patamar no processo de desenvolvimento. Assim como o chamado processo de Substituição de Importações de meados do século passado permitiu o salto tecnológico do país ao substituir a importação de matérias primas e de processos tecnológicos por meio de cadeias produtivas locais, assim também um processo de Substituição de Exportações permitiria agregar valor local a atividades que hoje se destinam ao mercado externo. Substituir, por exemplo, as exportações de produtos florestais, especialmente madeira (com ou sem valor agregado) favorecem a manutenção da cobertura florestal para a exportação dos seus serviços ambientais, em particular o de sequestro de carbono. 

Releitura Monalisa – Arte: Yvaral (Jean-Pierre Vasarely)

Este novo padrão impõe ainda a importância do resgate de um conceito clássico da ecologia, o da resiliência. Convém assinalar que resiliência aplicada à produção significa a capacidade de experimentar uma interrupção no fornecimento de um input sem sofrer um declínio sério e permanente no output desejado. A realidade indica, entretanto, que tem havido um abandono generalizado de sistemas resilientes em favor de sistemas eficientes – escala maior, menos diversidade, menor redundância, com consequências que colocam em risco a integridade e sobrevivência de sistemas naturais e humanos.

No extremo oposto, vislumbra um futuro mais promissor o cenário que convida a desvendar o enigma de Mona Lisa. Durante anos permaneceu envolto em mistério o sorriso da Gioconda retratado por Leonardo da Vinci, dando lugar às mais variadas teorias. Provavelmente a mais próxima da verdade é a capacidade de o gênio Florentino de perceber movimentos sutis antes que estes se manifestem. Foram necessários mais de 4 séculos para que câmeras de alta velocidade pudessem ser capazes de comprovar o que já constava dos escritos de da Vinci, revelando como as libélulas voam com 4 asas, as da frente erguidas e as de trás abaixadas. 

Essa constatação levou a ser sugerida a metáfora de que, por trás do sorriso, encontra-se a empatia, muito mais do que a interpretação popular do “colocar-se no lugar do outro”, um movimento mais profundo, a capacidade de sentir pelo outro suas próprias emoções e sentimentos. Em outras palavras, uma forma racional e objetiva de experimentar na própria pele o que o outro está vivenciando.

Ainda que extrapole os limites de espaço deste ensaio, convém esboçar os contornos mais significativos do cenário Mona Lisa. Impossível não imaginar que esse futuro pós-Covid não esteja emoldurado por iniciativas de superação da profunda crise de instabilidade climática que representa a ameaça mais próxima de extinção da civilização atual, quando não da própria extinção da espécie.

 Oferece o pano de fundo e contexto mais geral desse cenário, à imagem e semelhança do New Deal que, nos anos 1933-37, permitiu aos Estados Unidos superar a crise de 1929, a iniciativa do Green Deal proposto por progressistas norte-americanos possui as características capazes de propiciar a transição para um mundo pós-Covid. 

O Green Deal que tem como Norte reduzir à metade os atuais US$ 650 bilhões anuais de gasto militar, recorde absoluto em tempos de paz, e redirecionar esses recursos para a criação de pelo menos 20 milhões de postos de trabalho em indústrias verdes. Criadas com a eliminação de subsídios à produção de combustíveis fósseis e o consequente investimento massivo em fontes renováveis de energia como eólica, solar, geotermal e outras. O objetivo final é garantir 100 por cento de energia limpa ao final dos anos 2030. Complementam as medidas propostas pelo Acordo Verde o resgate do acesso universal à educação e a sistemas públicos de saúde, assim como espera-se que neste futuro mais sustentável a renda básica universal e uma reforma tributária de matiz progressiva torne-se uma realidade mundial. 

Seria certamente um exagero sugerir que Samuel Beckett teria se inspirado na Sustentabilidade na noite de 5 de Janeiro de 1953, quando estreou em Paris “Esperando por Godot”, um clássico da dramaturgia mundial que revelava o “sofrimento do ser”, a tragicomédia de Estragon e Vladimir esperando em vão por alguém para aliviar o tédio em suas vidas. Entretanto, a desesperança que caracteriza o estado atual do Planeta, reforçada pelo autismo dos líderes governamentais presentes nas sucessivas Cúpulas ambientais e sociais das Nações Unidas, pode efetivamente transformar a todos em atores desvalidos, lutando para superar o tédio e a inação discutindo uma sustentabilidade meramente retórica. Tal como na obra de Beckett, quanto mais discursamos solenemente sobre Desenvolvimento Sustentável, nossas ações tornam menos factíveis as possibilidades de sua materialização no curto e médio prazo. 

O que um cenário Mona Lisa projeta é um franco processo de reversão das tendências atuais em pós da diminuição das brechas de desigualdade e de exclusão, o que requer de um novo marco de políticas públicas que coloque o ser humano no centro do processo de desenvolvimento, que considere o crescimento econômico não como um fim, mas como um meio para alcançar maiores níveis de bem-estar socioambiental, que proteja a qualidade de vida das gerações atuais e futuras e que respeite a integridade dos sistemas naturais que permitem a existência de vida no Planeta. Afirmar que os seres humanos devem constituir o centro e a razão de ser do desenvolvimento implica resgatar um estilo de desenvolvimento que seja ambientalmente sustentável no acesso e uso dos recursos naturais e na preservação da biodiversidade; que seja culturalmente sustentável na conservação do sistema de valores, práticas e símbolos de identidade que determinam a integração nacional através do tempo; e que seja politicamente sustentável ao aprofundar a democracia e garantir o acesso e a participação de todos os setores e estratos da sociedade na tomada de decisões. 

Este novo padrão estará necessariamente orientado por uma nova ética de desenvolvimento em que os objetivos econômicos estejam subordinados às Leis que regem o funcionamento dos sistemas naturais, e que obedeçam também aos critérios de respeito da dignidade humana e de melhoria da qualidade de vida das pessoas. Sendo assim, os cenários mais otimistas com as possíveis soluções à crise atual de civilização terão que ser encontrados no próprio sistema social e não em alguma mágica tecnológica ou de mercado.

A partir de suas pesquisas sobre primatas, o primatólogo Frans De Waal sublinha que, se bem a biologia pode ser invocada para justificar o comportamento egoísta, foi a evolução das espécies que produziu o amálgama que une os membros de uma sociedade, tanto entre os humanos como nas espécies do reino animal. Por extensão, o comportamento ético e a empatia terminam prevalecendo sobre o egoísmo e respondem a uma história evolucionária de milhões de anos.

Em resumo, o cenário mais promissor pós-Covid é um que outorga primazia à chamada “economia do cuidado”, que oferece o indispensável amálgama ético para o respeito da dignidade humana e dos membros menos favorecidos ou francamente marginalizados ou excluídos da sociedade. Representa, em suma, o império da justiça socioambiental, tanto sincronicamente como entre gerações. Não cabe dúvida que a luta pela materialização do sorriso de Mona Lisa justifica aunar todas as forças para almejar esse impossível e resgatar o caráter intrinsecamente humano da sociedade. Um mundo no qual valha a pena fazer parte.

Parece estar igualmente fora de lugar que a sociedade insista no comportamento de Vladimir e Estragon, à espera do Godot da sustentabilidade, enquanto prossegue o debate retórico, política e hegemonicamente interessado, a respeito da ciência, da governança ou dos atores necessários para superar a atual crise de civilização. Por mais que se esteja disposto a aceitar o muito que ainda resta avançar em matéria de conhecimento, instituições e mecanismos para um cenário de sustentabilidade, a verdade é que todos já estamos cansados de saber quais são os desafios mais urgentes, os responsáveis e as políticas requeridas para superar a insustentabilidade, agora socialmente “escolhida”, por omissão e ação consciente, como alternativa gatopardista de solução da crise.

Felizmente, a poesia de Antonio Machado ensina que “caminhante, não há caminho, o caminho se faz no andar”. Afortunadamente, não se pode caminhar nas redes sociais ou na realidade virtual, impõe-se a necessidade do contato “olhando nos olhos”, trilhando as veredas. Apesar de tudo que parece mitigar em sentido contrário nos dias atuais, ainda é possível transformar o debate a respeito do futuro na construção de uma realidade de sustentabilidade econômica, ambiental, cultural, política e, sobretudo, ética. 

Seguindo metaforicamente os caminhos de Antonio Machado, David Frost nos deixou o legado de duas estradas que divergiam em um bosque, e “eu segui o menos percorrido. “Isso fez toda a diferença”. De ser assim, não há dúvida, a Mona Lisa estará esperando por nós com um sorriso.

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