* Por Arthur Soffiati
Crise. Pelo prisma conceitual, crise tem um sentido polissêmico. Entende-se que um sistema entra em crise quando a regularidade dele é quebrada. Se, depois da crise, o sistema volta a funcionar como antes, diz que ela é conjuntural. Se o sistema chega ao fim e dá lugar a outro, considera-se que ela é estrutural. Mas há quem entenda que vivemos em crise permanente. Se não há crise, se vivemos em crise permanente, o conceito de crise se esvazia e perde o sentido.
Crises ambientais naturais. Admitindo-se que uma crise quebra uma situação de regularidade, mesmo que ela tenha altos e baixos, podemos dizer que o planeta Terra passou por várias crises e, até aqui, vem superando todas, embora sofrendo mudanças. Podemos admitir três tipos de crise. A primeira é motivada por fatores naturais com intensidades diferentes. Quando muito intensas, marcam o fim de uma Era, como foram os casos da crise da Era Paleozoica, que extinguiu mais de 90% das espécies, e a crise da Era Mesozoica, que eliminou quase todas as espécies de dinossauros. Houve menores, como a que encerrou o período Paleoceno e deu origem ao Eoceno. A humanidade então não existia e não pode ser responsabilizada por elas.
Sociedade versus natureza antes do Ocidente. A mais antiga crise ambiental conhecida ocorreu no vale do Indo, no atual Paquistão. Ela concorreu para o colapso da civilização índica, por volta de 1500 a. C. Sendo a pedra escassa, essa civilização recorreu à argila para suas monumentais edificações. As matas foram derrubadas e transformadas em lenha para o cozimento de tijolos. Exigiu-se muito das terras, submetendo-as a intensa erosão. As chuvas sofreram redução, o que afetou a produtividade vegetal.
A civilização khmeriana desenvolveu-se na bacia do rio Mekong, no atual Camboja. Inspirada pelo budismo, a sociedade ergueu templos e palácios. Angkor, sede do império do Khmer, chegou a ter um milhão de habitantes. Para sua construção, foram desmatadas grandes áreas. Uma rede de lagos dependente do Mekong foi construída para a produção do arroz. A navegação de longo alcance foi desenvolvida. Há indícios de que o uso continuo das águas e o equilíbrio precário dos lagos, decorrentes da expansão khmeriana provocaram uma crise ambiental local e doenças contagiosas, concorrendo para o declínio da civilização.
Na América central, desenvolveu-se a monumental civilização maia com cidades independentes que guerreavam entre si. Com tempo, a população aumentou e atingiu três milhões de pessoas, segundo estimativas. Tornou-se necessário estender as superfícies cultivadas, passando-se das planícies férteis, enriquecidas por aluviões, para as encostas. As florestas protetoras foram derrubadas, o que desencadeou acelerada erosão e atulhou progressivamente rios e lagoas. Os solos perderam a fertilidade. Pouco a pouco, as terras tornaram-se incapazes de sustentar a população.
Embora controverso, o caso da ilha de Páscoa continua ilustrativo. Integrantes da civilização polinésia, os primeiros colonizadores da ilha se dividiram em grupos. Todos eles faziam gigantescas esculturas na parte montanhosa, onde havia pedra abundante, e as transportavam para a costa rolando-as em troncos de palmeiras. Além do mais, os grupos ateavam fogo às matas do adversário. A natureza da pequena ilha no Pacífico foi destruída em tempos de paz e de guerra, restando um ambiente escalvado antes da chegada dos europeus.
Mas essas crises ocorreram em território local e de modo reversível. Bem diferentes da crise que se iniciou na Europa Ocidental do século XI.
Crise ambiental da atualidade. Presume-se que o aquecimento global entre os séculos IX e XIII da era cristã, na Europa Ocidental, tenha contribuído para a gênese de um novo sistema econômico. Esse aquecimento foi natural, assim como outros episódios de aquecimento e resfriamento no Holoceno, época geológica que começou a 11.700 anos passados. Com ele, a atividade agropastoril prosperou em todo o mundo, estimulando a derrubada de florestas, a drenagem de pântanos e a irrigação de terras áridas para a expansão de lavouras e pastos. A produção rural aumentou significativamente e estimulou a constituição de uma classe social que passou a viver dos excedentes de produção. Grande parte dos bens de uso foi transformado em bem de troca.
A troca de bens é uma atividade praticada por qualquer povo, mas ela está sujeita às oscilações da produção. Esse comércio não-capitalista dependia do excedente, produzido em anos fecundos. Não havia, nele, a intenção de gerar excedentes para o comércio. Mas, nos primórdios do capitalismo, o excedente passa a ser parte principal da produção para atender ao comércio e ao lucro. Assim, a atividade comercial vai dominando progressivamente a economia, gerando trocas de longa distância, moeda e bancos. Proliferam também os assaltantes de estrada.
O comércio passa a dominar a Europa. Produtos do oriente tornam-se importantes para essa economia. Formam-se grupos monopolistas na Itália e na Alemanha. São exemplares os casos de Veneza e da Liga Hanseática. Formou-se uma burguesia hegemônica monopolista e burguesias menores que desejavam romper o monopólio de Veneza no comércio de bens provindos do oriente. Esse desejo levou à formação de Portugal, Espanha, França, Holanda e Inglaterra, que tentaram romper o monopólio veneziano pelo oceano Atlântico. Espanha e Portugal foram os primeiros. A Espanha formou um império tendo o México como centro e os metais preciosos da América como fundamento de seu poderio. Portugal criou uma segunda Lisboa na Índia para dominar o comércio oriental. Dominou também o Brasil.
Fora o comércio de bens já existentes, os cinco países extraíram bens da natureza como se eles fossem inesgotáveis. Ouro, prata, madeira, animais com aparência exótica para os europeus. Biomas e ecossistemas nativos foram destruídos progressivamente, como a Mata Atlântica, as florestas da América do Norte e da África. Nativos da América e da África foram usados para o trabalho compulsório na forma de servidão e de escravidão. Mesmo na Europa, o servo feudal foi sendo transformado em trabalhador assalariado, perdendo suas terras e se transferindo para as cidades como operários. Natureza explorada em abundância, como se fosse infinita, e mão-de-obra disponível permitiram a Revolução Industrial, primeiramente na Inglaterra. Depois em outros países europeus, nos Estados Unidos e até no Japão.
Natureza: objeto ou sujeito? No século XVII, o filósofo francês René Descartes proclamou que a natureza é objeto de conhecimento e de exploração. Ela não tem vida própria e deve ser explorada de forma ilimitada pelo “homem”, o único ser pensante e detentor de alma. Há ingênuos sustentando que ele separou a humanidade da natureza, transformando-a em objeto. Essa mudança já vinha ocorrendo na prática. Descartes deu roupagem filosófica ao antropocentrismo europeu, que já se afirmava nas relações entre humanos e entre humanidade e natureza. Contudo, segundo Descartes, o sujeito da história não era todo o ser humano, mas o homem branco europeu, intelectualmente preparado, conhecedor de matemática. Estavam excluídos o branco europeu trabalhador, a mulher, o africano, o nativo das Américas e o asiático.
Por esse viés, a crise ambiental da atualidade tem sua origem entre os séculos IX e XIII. É o que defendem os pensadores que denominam essa crise de Capitaloceno (MOORE, Jason W. (org.). Antropoceno ou Capitaloceno? São Paulo: Elefante, 2022). Os que se valem do conceito de Antropoceno, normalmente situam a origem da crise na Revolução Industrial (LATOUR, Bruno. “Diante de Gaia”. São Paulo: Ubu, São Paulo, 2020). No meu entendimento, vivemos uma crise ambiental, mas é prematuro afirmar que ela marca o fim do Holoceno (SOFFIATI, Arthur. “Holoceno”, Rio de Janeiro: Autografia, 2022).
Sem dúvida, a Revolução Industrial acelerou a crise, que ganhou velocidade após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mas ela adquiriu grande visibilidade na década de 1970. Alguns estudiosos perceberam que se tratava agora de discutir os limites do crescimento. Que o chamado desenvolvimento no capitalismo e no socialismo real estava extraindo recursos de maneira excessiva da natureza e, ao mesmo tempo, lançando nela mais rejeitos que sua capacidade de absorção. Os rios, lagoas e oceanos estavam sendo progressivamente poluídos. O solo estava sendo empobrecido. Os biomas naturais em todo o planeta estavam sendo destruídos. Estes foram os temas discutidos na Conferência de Estocolmo (1972). Já na década de 1970, a questão das mudanças climáticas começou a ganhar destaque, mas só em 1990 ganhou apoio denso da comunidade científica reunida em torno do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), ligado à Organização das Nações Unidas.
Desde então, a crise geral vem se agravando, com o aquecimento da atmosfera, dos oceanos, do ar e do solo. Este aquecimento progressivo é causado, principalmente, por emissões de gases que adensam a camada de gases na atmosfera, provocando chuvas diluvianas e secas severas, com ondas de calor e incêndios. As temperaturas vêm subindo ano a ano na média. As grandes instituições meteorológicas mostram que tais mudanças no clima do Holoceno atingem o mundo todo. No Brasil, as enchentes no Rio do Sul e o fogo que se alastra em todo o Brasil, em 2024, demonstram a realidade das mudanças climáticas.
Atitudes diante da crise ambiental da atualidade. Duas grandes atitudes diante da crise ambiental atual dividem o mundo. A primeira continua não acredita nela, seja de forma explicita ou implícita. Explicitamente, alguns negam a existência da crise. Por mais que ela seja atestada pela comunidade científica, a postura negacionista rejeita a ideia de que atividades humanas coletivas sejam capazes de promover mudanças climáticas ou de destruir a floresta amazônica, por exemplo. Os que estão convencidos de que a economia é a grande responsável pela crise preocupam-se seriamente com ela e com os caminhos para revertê-la ou atenuá-la. Mas há uma grande parcela, estendendo-se das camadas pobres da sociedade ao meio universitário, que acredita na crise sem se envolver com ela em profundidade. Esta postura pode ser resumida assim: “Certo, a crise existe, notadamente expressa pelas mudanças climáticas, mas vamos em frente porque nada podemos ou não sabemos o que fazer.”
De fato, a crise assumiu tal dimensão que as ações individuais e coletivas da sociedade são incapazes de combatê-la. Os empresários e os governos são prisioneiros dela. Propostas de mudança se multiplicam. Declarações de líderes políticos e empresarias mostram empenho em combater a crise, mas as ações acabam se limitando aos discursos. A crise já ameaça a economia que a gerou e a governança em todos os níveis.
Da parte do autor dessas linhas, a crise afeta a sociedade e a natureza. No início, apenas as camadas pobres da sociedade sofriam com ela. Ano a ano, porém, a crise se estende e afetas camadas médias e altas da sociedade, direta ou indiretamente. Afeta também o solo, os rios, os mares, o ar, o clima, a vegetação, os animais etc. No entanto, a atenção maior fica por conta dos impactos socioambientais. Todo apoio aos movimentos a favor da justiça ambiental, mas eles não bastam. A natureza não-humana também precisa de apoio. Não se pode resolver problemas de grupos humanos atingidos pela crise transferindo-os para áreas naturais. Exemplo: uma empresa expulsa pequenos produtores rurais de suas terras. A solução não é alocá-los em áreas destinadas a proteger amostras significativas de ecossistemas. No entanto, esse entendimento é ainda muito comum entre os socioambientalistas, assim como o entendimento de que as áreas naturais devem ser protegidas a qualquer custo.
Por fim, a constituição de um novo sujeito de história. A natureza sempre teve papel ativo na história da Terra e da humanidade. No entanto, sempre foi vista como elemento inerte ou objeto de história. Agora, ela mostra ser um poderoso agente de transformação e se torna, de forma inequívoca, sujeito de história. Olhando para o passado, os historiadores ambientais conferem à natureza o papel de agente histórico.
* Arthur Soffiati é professor associado da Universidade Federal Fluminense aposentado