Licenciamento sem consulta aos povos tradicionais foi autorizado pelo então presidente do órgão ambiental estadual, afastado por corrupção
Em época de chuva, os moradores de Almas, no sudeste do Tocantins, costumavam sair de casa para procurar pepitas de ouro nas ruas. É o que conta Laelson Ribeiro de Souza, engenheiro agrônomo e liderança quilombola da comunidade Baião, localizada no município.
A abundância do metal em Almas, conhecida como “capital do ouro” do Tocantins, contrasta com a recente escassez de um bem vital: a própria chuva. Na última década, ela tem estado bem mais esparsa na região. O ouro segue jorrando, mas agora é para poucos – para uma única empresa, na verdade.
“O ciclo da chuva mudou para a gente. Se antes eram seis meses de chuva, hoje a gente está contando com três, quatro meses”, relata Laelson de Souza.
A mudança climática já impacta as roças dos moradoras da Baião e de outras comunidades da região, situada a cerca de 300 quilômetros de Palmas, mas está longe de ser o único problema hídrico vivenciado. O acesso dos quilombolas à água, de modo geral, está cada vez mais comprometido, como narra o também morador da Baião, Adelmir Nunes de Souza. “Essa natureza que nós temos, que era perfeitinha, infelizmente está acabando. As nascentes que tinham olho d ‘água, eles entupiram tudo, meteram a máquina, nivelaram as grotinhas menores.”

Almas é conhecida como “capital do ouro” do Tocantins. Foto: Tatiana Merlino
Por “eles”, Adelmir se refere aos fazendeiros que vêm tomando a região para plantar soja, motivados pelo decreto do Matopiba, acrônimo para os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, assinado por Dilma Rousseff em 2015. O decreto é uma iniciativa federal com medidas que impulsionam o agronegócio na região. O desmatamento por parte das fazendas, bem como a contaminação da água por agrotóxicos, também compõem o cenário dos impactos hídricos.
Todos os municípios do Tocantins integram o Matopiba. Considerada a última fronteira agrícola do país, tem recebido enormes recursos governamentais para infraestrutura e financiamento de produção agrícola para exportação.
Para os quilombolas, a gota d’água para o acesso à água veio da própria exploração do ouro: desde 2023, a mineradora canadense Aura Minerals vem extraindo o metal em uma mina a céu aberto nas margens do principal rio da região, o Manuel Alves, a poucos quilômetros da Baião e de outras três comunidades quilombolas.
Apesar de a mudança climática no sudeste do Tocantins ser evidente para seus moradores, ela não foi considerada pelo órgão ambiental que autorizou o projeto, o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins).

Licenciamento ambiental
Em 2021, o instituto aprovou o licenciamento ambiental para a mina da Aura com base em um Estudo Ambiental Simplificado produzido dez anos antes, em 2011, para outra mineradora, a Rio Novo Mineração, que detinha a concessão da área à época. Não foi exigido um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) atualizado, e seu respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), modalidade mais completa demandada para atividades minerárias.
O dado é o principal objeto de questionamento de uma Ação Civil Pública (ACP) que pede a suspensão do licenciamento, proposta pela Defensoria Pública do Tocantins e pela Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (COEQTO), em dezembro de 2023, contra a Aura Minerals, o Naturatins e o Estado do Tocantins.
Segundo a defensora Kenia Martins Pimenta Fernandes, uma das autoras da ACP, há indícios de que projetos de irrigação de fazendas fruticultoras e sojicultoras na região impactaram o abastecimento de água ao longo do período. “Esse é um ponto que mostra que a questão ambiental, entre 2011 e 2021, se modificou”, afirma.
A ação destaca que a extração e beneficiamento de ouro é uma atividade diretamente dependente do uso de água, o que comprometeria ainda mais a segurança hídrica das comunidades locais. Na mina em questão, a água é captada do rio Manuel Alves por meio de uma adutora instalada em suas margens.
“Eles puxam o rio Manuel Alves. Fizeram um encanamento que puxa a água do rio para trabalhar lá na obra”, comenta Adão Luiz de Albuquerque, quilombola da comunidade Lajeado, localizada na outra margem do rio, no município tocantinense de Dianópolis.
Além de desviar as águas do rio, a mina da Aura Minerals tem uma barragem de rejeitos sólidos localizada a 5,6 quilômetros da comunidade Baião, na área da nascente do córrego Riachão, principal fonte de água da comunidade.
Vista do alto, a barragem impressiona. É um lago que se estende no horizonte. Do outro lado desse lago, bem de frente, está Baião, que já não dorme direito, assustada com o histórico recente das tragédias de Mariana e Brumadinho. Os moradores não foram avisados sobre a existência de qualquer plano de fuga, nem treinados sobre como lidar com um eventual rompimento.
Andando poucos metros pela estrada, o pó começa a tomar conta. Caminhões circulam em espiral, descendo até se tornarem uma miniatura em meio ao buraco gigante aberto para a exploração de minérios. São dezenas, possivelmente centenas de veículos operando em simultâneo. A parte mais profunda da escavação é impossível de avistar, e ninguém se arrisca a entrar nas terras da mineradora, conhecida localmente por impedir qualquer gravação. Esse buraco passou a ser uma espécie de núcleo – um miolo no meio de quatro comunidades quilombolas que lutam há décadas por titulação.
Uma delas, São Joaquim, fica ainda mais perto da barragem: 2,6 quilômetros. A pilha de estéril da mina é projetada para se localizar próxima à nascente do Riacho do Ouro, crucial para a subsistência dos moradores de São Joaquim. Ambos os corpos d’água são afluentes do Manuel Alves e do rio Tocantins.
Os quilombolas temem que um eventual rompimento da barragem de rejeitos da Aura contamine as fontes de água ainda disponíveis em seu território. É o que relata Siran Nunes de Souza, morador da Baião. “A barragem que fizeram foi acima de nós. Então, se Deus o livre, estourar lá, não tem salvação aqui. Para nós foi uma pedra que colocaram acima de nossas cabeças, perdemos nosso sono”, lamenta.



