O complexo arqueológico da Ponta da Castanha, localizado na Floresta Nacional de Tefé (FLONA), no Estado do Amazonas, pode conter pistas importantes sobre a relação entre as populações humanas, que ao longo de milênios existiram na região, e a paisagem local. Isso porque a área abriga um vasto castanhal que não segue o que seria o padrão natural de dispersão dessa espécie. As castanheiras, associadas a outras espécies indicativas do manejo humano, cobrem quilômetros ao longo da beira do rio, mas não vão além dos 500 metros em direção à floresta. A Floresta Nacional de Tefé é uma Unidade de Conservação federal sob gestão do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio).
Objeto de estudo da pesquisadora associada ao Instituto Mamirauá Mariana Cassino, a relação entre as plantas encontradas no local e as pessoas que tinham a região como lar no passado pode revelar como essas populações moldavam a paisagem ao seu redor. “A minha pesquisa é um diálogo entre arqueologia e botânica que procura entender essa história de longa duração de domesticação e de transformação da paisagem da Amazônia por povos pré-coloniais até os dias de hoje”, explica Mariana, doutoranda do Instituto de Pesquisas da Amazônia (INPA).
Em Agosto, pesquisadores do Grupo de Pesquisa em Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá e de diversas outras instituições fizeram uma expedição ao complexo arqueológico da Ponta da Castanha para realizar escavações à procura de vestígios dos povos que habitaram o local no passado.
O trabalho de campo contou com o apoio do Grupo de Pesquisa em Ecologia Florestal do Instituto Mamirauá, que realizou um levantamento florístico na área. Além das castanheiras, outras espécies vegetais indicativas do manejo humano foram encontradas, como o cacau, o açaí e o cupuaçu. “Entendendo como as pessoas hoje manejam a floresta, vamos buscar entender como as pessoas do passado também manejavam a floresta”.
Coordenado por Mariana Cassino e Rafael Lopes, também pesquisador associado ao Instituto Mamirauá, organização social fomentada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o trabalho envolveu mais de 40 pessoas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
A pesquisa
Além da grande quantidade de material cerâmico encontrado no sítio, foram coletados vestígios de plantas carbonizadas, fundamentais para a pesquisa de Mariana. “A gente consegue identificar essas plantas carbonizadas e entender um pouco quais eram as plantas que estavam sendo consumidas, e, de acordo com o que a gente encontra, podemos ter pistas de como essas plantas eram manejadas”, revela a pesquisadora. “Muitas espécies frutíferas da floresta eram consumidas, como a castanha, o cacau, além de outras várias espécies de palmeiras”.
“Sabemos também que essas pessoas cultivavam muitas espécies herbáceas: tanto as espécies que foram domesticadas aqui na Amazônia, como a mandioca, quanto espécies que foram domesticadas em outras partes das Américas, como o milho, a abóbora, e que foram trazidas por essas redes de trocas que existiam entre as populações aqui no passado”.
Esses vestígios botânicos são importantes também para que se compreenda como as redes de troca aconteciam na Amazônia no passado. “A gente sabe, a partir deles, que essas redes eram muito grandes, muito complexas. Há pelo menos 10 mil anos essas plantas já estavam sendo trocadas pelas pessoas aqui no que a gente chama hoje de América”.
Acredita-se que muitas das espécies cultivadas hoje na Amazônia sejam resultado dessa antiga rede de trocas. “É uma história de longa duração que vai formando essas florestas enriquecidas com espécies úteis e com diferentes funções ecológicas, mas que são bastante ricas e diversas”.
Além dos carvões, a análise do material coletado em laboratório deve revelar microvestígios botânicos como fitólitos e amidos – partículas produzidas por vegetais que também podem conter indícios do que era cultivado e consumido por populações ancestrais. “A análise dos fitólitos é interessante porque se uma planta viveu e morreu ali, o fitólito vai permanecer na terra. Se uma planta foi preparada num pote de cerâmica, alguns fitólitos ou amidos dela também podem ficar ali, então a gente consegue saber o que foi preparado naquele recipiente”.
A análise dos fitólitos, amidos e dos carvões vai permitir uma maior compreensão sobre o modo de vida dessas populações e como elas cultivavam e preparavam seus alimentos.
Floresta enriquecida
Mariana afirma que o modelo de ocupação praticado por esses povos indígenas antigos na região enriquecia a floresta. “É um modelo que constrói florestas ricas, enriquece áreas, enriquece o solo, torna solos mais férteis, mais produtivos e esses solos também vão possibilitando a manutenção dessas florestas”.
“O castanhal não é só um castanhal, ele está cheio de outras espécies frutíferas e medicinais ocorrendo junto. É uma floresta extremamente rica e diversa, sendo que muitas das espécies que ocorrem nessa área são utilizadas aqui hoje”, explica a pesquisadora. “Há também uma diversidade muito grande de solos: solos escuros, argilosos e arenosos. A gente ainda quer entender como as atividades humanas se relacionam com essa grande heterogeneidade de ambientes”.
O agricultor Raimundo Lopes Ramos, da comunidade Bom Jesus da Ponta da Castanha, uma das comunidades que abarcam o complexo onde ocorreram as escavações, conta que desde que passou a morar na área realiza o manejo do castanhal com o objetivo de fazê-lo produzir mais. “Nenhum de nós aqui pode dizer que plantou uma dessas castanheiras, quando chegamos aqui esse castanhal já existia. A gente deve agradecer a quem plantou porque para nós é muito útil, gera um recurso financeiro”, afirma.
“É interessante pensar que, na Amazônia, o que a gente tem hoje é uma floresta produto da interação entre o ser humano e a natureza. No momento da colonização europeia, havia muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo em todos os continentes e aqui não era diferente: as pessoas viviam em sociedades complexas, ocupando os espaços com conhecimentos e tecnologias próprios, domesticando plantas. É uma história que tem de ser contada e, mais do que nunca, agora”, conclui Mariana Cassino.