Crescimento da demanda e ampliação das fontes de energia renováveis exigem novas arquiteturas de mercado e trazem oportunidades, indicam especialistas em painel do ETRI 2024.
Em meio à transição energética rumo à ampliação do uso de fontes renováveis para gerar eletricidade, o Brasil parte de um patamar favorável, na comparação com outros países. Enquanto o mundo ainda depende do carvão para suprir cerca 35% de sua matriz energética e apenas 14,7% vêm de fontes limpas, mais de 80% da matriz brasileira tem origem em renováveis. O cenário no país em princípio vantajoso apresenta, no entanto, desafios – que podem ser encarados como oportunidades, segundo especialistas presentes no painel “Perspectivas para o setor elétrico brasileiro”, realizado no dia 5 de novembro na Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista. O painel fez parte da Conferência de Pesquisa e Inovação em Transição Energética 2024 (ETRI), organizado pelo Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI).
“Precisamos modernizar e digitalizar o setor, pensar em uma regulação que seja mais adequada para o momento que estamos vivendo, temos também algumas questões em relação a incentivos e encargos no setor, muitas vezes questionáveis”, sintetizou o engenheiro eletricista Mauricio Salles, professor da Escola Politécnica (Poli) da USP e diretor do programa InnovaPower do RCGI, que coordenou o painel. O sistema brasileiro, assim como os de outros países, vem passando pelos primeiros “soluços” para a integração em larga escala das energias renováveis, de acordo com o professor da Poli-USP Renato Monaro, vice-diretor do InnovaPower, que também coordenou o painel. “Esses outros sistemas [de diferentes países] têm natureza distinta do nosso. Precisamos encarar o nosso problema de maneira única, aprender com o que foi feito e trazer para o nosso contexto o que for bom. Onde olhar para possíveis tecnologias que nos auxiliem a avançar mais na integração das nossas renováveis?”, questionou.
De acordo com ele, um dos novos vetores de interesse deve ser o de armazenamento de energia, como os de bateria de lítio-íon e bateria de fluxo, por exemplo. Outro está na digitalização e no uso de inteligência artificial para desenvolver previsões mais adequadas com relação às curvas de demanda, geração e distribuição. Também merecem atenção os sistemas híbridos, com integração de geração eólica e solar. Outra vertente é a produção de hidrogênio como opção de fonte de energia.
A engenheira química Karina Araújo Sousa, diretora do Departamento de Transição Energética do Ministério de Minas e Energia, que participou do painel por videoconferência, disse que a previsão do governo é de um crescimento de 3,4% no consumo de eletricidade em dez anos, ao mesmo tempo em que se impõe a necessidade de ampliação das fontes renováveis para a redução da emissão de gases de efeito estufa, causadores do aquecimento global. Além da perspectiva de crescimento da economia, de eletrificação de processos industriais, de residências e serviços essenciais, há ainda no cenário a demanda de altas cargas previstas por novos data centers e plantas de hidrogênio. “Uma das questões é a expansão da nossa rede de transmissão. Como fazer para escoar de forma mais inteligente os recursos das renováveis eólicas e solar, concentradas no Nordeste? A nossa principal preocupação é fazer com que a rede consiga atender a geração por energia solar e eólica, que vai continuar expandindo nos próximos anos, consiga acomodar também a micro e média geração distribuída e ainda as novas cargas das plantas de hidrogênio, dos data centers e o aumento no consumo de eletricidade.”
Observando que o setor elétrico é em geral resistente a mudanças, o professor de Engenharia Elétrica da Poli-USP Dorel Soares Ramos ressaltou que há uma profunda transformação em curso, motivada, entre outros fatores, pela inovação tecnológica e pela mudança de comportamento na sociedade, cada vez mais digital e mais exigente em relação aos produtos consumidos. “Nos próximos 10 anos vai acontecer muito mais do que aconteceu nos últimos 100”, estimou. “Temos uma necessidade premente de evolução de recursos de comunicação, controle, automação, eletrônica de potência e de novos paradigmas na regulação, porque, se a regulação não acompanha, muitas das tecnologias acabam não podendo ser implantadas. O armazenamento até hoje ainda não está devidamente regulamentado pela Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica], por exemplo”, disse.
Quatro megatendências foram apontadas pelo professor Dorel Ramos para o setor: descarbonização, digitalização, descentralização e diversificação. “A matriz energética tem que ser diversificada para focarmos na segurança e olharmos o aspecto da complementariedade”, afirmou. Segundo ele, as chamadas renováveis não despacháveis (energia eólica e solar), que não são diretamente controláveis e dependem do recurso primário (vento e sol), são as atuais responsáveis pela expansão da matriz energética. “Quando elas atingirem o status de player dominante, há que se desenvolver novas arquiteturas de mercado, inclusive para permitir a compatibilização e estabelecer uma convivência pacífica entre as fontes renováveis, as convencionais e os recursos de armazenamento. Há que se explorar a resposta pelo lado da demanda, melhorando a cooperação em tempo real entre os operadores de distribuição e transmissão, significando aí trocar dados, regular funções e responsabilidades.”
Se antes a energia percorria em uma direção só — era gerada em sítios distantes, nas grandes usinas, depois colocada no sistema de transmissão e então distribuída, sempre num mesmo sentido –, os fluxos agora são multidirecionais, o que representa um grande desafio para planejar e operar o sistema, apontou o professor. Ele vislumbra um futuro com condomínios inteligentes, plantas de geração de energia virtuais e mini operadores do sistema. “O consumidor vende a sua flexibilidade diretamente para a concessionária, agrega várias unidades de produção e consumo, com um sistema de comunicação e processamento bastante avançados. Esse é o meu grande sonho.”
Marcelo Miterhof, economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), afirmou que a expansão do setor representa uma oportunidade e o banco está interessado em ser o financiador de grandes investimentos em hidrogênio verde, na química verde e no aço verde. “O trabalho do BNDES é chegar aonde tem mais risco. É tentar criar as condições para que o mercado possa se agregar a esse financiamento à medida em que os riscos vão sendo controlados. Temos 200 gigawatts de potência e quase 120 foram adicionados de 2001 para cá. Temos a perspectiva de, em 10 anos, dobrar de novo, porque a transição energética é um grande desafio para todo o mundo, mas no Brasil é uma oportunidade produtiva muito grande”, afirmou.
Também participaram do painel o físico José Augusto Campos, líder de novos negócios da empresa Casa dos Ventos, que desenvolve e opera projetos de geração de energia a partir de fontes renováveis; João Gonzaga, líder de sistemas de energia da multinacional francesa TotalEnergies; Gustavo Gonçalves Gomes, gerente do Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp); e – de forma virtual – Daniel Vieira, especialista em regulação da Aneel.