José Eustáquio Diniz Alves * | Doutor em demografia
A sociedade global está envolta em um círculo vicioso, pois quando mais alimentos são produzidos maiores são os custos ecológicos e maior é a dificuldade para colocar comida na mesa da população mundial
Existe um mito de que a Terra tem amplas condições de atender a demanda mundial por alimentos até 2050. Segundo pensadores cornucopianas de esquerda, a grande dificuldade não seria no aumento da produção, mas sim na capacidade de distribuição e no acesso da população de baixa renda aos alimentos
Todavia, a realidade mostra que a oferta alimentar no mundo é mais complexa e há dificuldades crescentes para produzir comida para todos e de forma sustentável. Artigo de Chris Clayton (17/10/2018) utilizando o Índice de Produtividade Agrícola Global (GAP, em inglês) – compilado pela Global Harvest Initiative – mostra que a produção de alimentos não está crescendo rápido o suficiente para atender a demanda de comida da população mundial.
O problema é mais grave em países de baixa renda onde o crescimento da produção tem ficado, persistentemente, abaixo da demanda. O relatório mostra que pelo quinto ano consecutivo houve desequilíbrio entre a oferta e a demanda. Desta forma, se esta tendência não for revertida, o mundo pode não ser capaz de fornecer os alimentos, rações, fibras e biocombustíveis necessários para uma população global em crescimento.
A “Produtividade Total dos Fatores” (TFP, em inglês) nos países de baixa renda está crescendo em 0,96% ao ano, o que está abaixo do crescimento projetado nos últimos dois anos. Isso fica bem abaixo da taxa de crescimento necessária para atingir as metas de sustentabilidade de dobrar a produtividade dos alimentos nos países de baixa renda e alcançar a “fome zero” até 2030 ou mesmo até 2050.
Para atender à demanda projetada mais de 9 bilhões de pessoas na década de 2050, o relatório afirma que a produtividade agrícola global deve aumentar em 1,75% ao ano. Esse crescimento é necessário, mesmo que os cientistas do clima avisem que a produção das colheitas diminuirá, especialmente em ambientes tropicais nas próximas décadas, devido às temperaturas mais altas e padrões climáticos mais voláteis.
Neste panorama, não é de se surpreender que o preço dos alimentos esteja em alta. O Índice de Preços dos Alimentos (FFPI) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) vinha subindo em 2021 e acelerou o aumento em 2022. O FFPI ficou em 141 pontos em fevereiro, 159,7 pontos em março e apresentou uma ligeira queda em abril com 158,5 pontos. A média do primeiro quadrimestre de 2022 é a mais alta em cerca de 100 anos, sendo superado apenas pelo preço dos alimentos na época da 1ª Guerra Mundial e da pandemia da Influenza, no quinquênio 1915-1920.
O gráfico abaixo mostra que, antes de 2022, os recordes de alta do FFPI aconteceram em 1974 e 1975 (quando houve o primeiro choque do petróleo) e a década de 1971-80 foi a que teve a maior média decenal da série, com 110,2 pontos. Nas décadas de 1980 e 1990 os preços dos alimentos caíram e marcaram os menores valores do século XX. Mas a comida voltou a ficar mais cara no século XXI e está batendo recorde histórico de alta em função de 3 acontecimentos: pandemia da covid-19, guerra da Ucrânia e crise climática e ambiental.
É claro que toda série de dados sobre o preço dos alimentos tem influência de fatores conjunturais e estruturais. A pandemia e a guerra provocada pela invasão russa da Ucrânia sem dúvida jogaram os preços dos alimentos e da energia para cima, assim como a guerra do Yom Kippur afetou os preços em meados da década de 1970.
Mas a crise climática e ambiental não é um fator conjuntural e sim estrutural. E o pior é que a degradação ecológica tem a ter efeitos mais catastróficos nos próximos anos e décadas. O aumento da concentração de CO2 na atmosfera provoca a elevação da temperatura, acidifica as águas e os solos e gera ondas letais de calor. O aquecimento global provoca perdas das colheitas e tende a aumentar a desertificação de amplos territórios.
O gráfico abaixo mostra a correlação entre o aumento da temperatura global e a elevação dos preços dos alimentos da FAO. Nota-se que existe uma correlação crescente entre as duas variáveis sendo que dois terços (66,8%) da variabilidade do preço da comida está associado ao aquecimento global. Evidentemente, uma correlação não implica em causalidade. São muitos os fatores que explicam o aquecimento global e outros tantos que explicam a elevação do preço dos alimentos.
No início da década de 1940, Mahatma Gandhi disse: “A terra pode oferecer o suficiente para satisfazer as necessidades de todas os indivíduos, mas não na ganancia de todos”. Todavia, esta frase foi dita quando a população mundial era de cerca de 2 bilhões de habitantes e atualmente se aproxima de 8 bilhões de habitantes. Nas últimas décadas a humanidade superou a capacidade de carga da Terra e o déficit ambiental se ampliou. A cada dia a Terra perde a biocapacidade de sustentar o crescimento demoeconômico desregrado.
Indubitavelmente, a sociedade global está envolta em um círculo vicioso, pois quando mais alimentos são produzidos maiores são os custos ecológicos e maior é a dificuldade para colocar comida na mesa da população mundial. O caminho atual é insustentável e o aumento do Índice de Preço dos Alimentos da FAO é o reflexo da insustentabilidade do modelo de vida predominante na dinâmica que sustenta a economia internacional, com suas desigualdades, monopólios e a tendência de crescimento desregrado e ilimitado. Ao mesmo tempo a produção de alimentos é grande produtora de gases de efeito estufa.
O recorde do FFPI da FAO, em 2022, é muito mais do que um alerta. Infelizmente, a perspectiva é de manutenção de elevados preços dos alimentos. Isto vai afetar, principalmente, as camadas de mais baixa renda da população mundial.
A época da comida barata acabou. O mundo vai passar por um momento de grande dificuldade se o meio ambiente não for respeitado, pois é a humanidade que depende da natureza, pois a natureza não depende dos seres humanos.
Sobre o Autor
* José Eustáquio Diniz Alves possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (1980), mestrado em Economia (1983), doutorado em Demografia pelo CEDEPLAR-UFMG (1994) e pós-doutorado pelo Nepo/Unicamp. Trabalhou na Secretaria do Trabalho de Minas Gerais entre 1984 e 1988, sendo coordenador estadual do SINE e foi professor da Universidade Federal de Ouro Preto de 1987 a 2002. Foi tesoureiro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (2005-2006) e vice-presidente da ABEP (2007-2008). Diretor de finanças da Associação Latino Americana de População (ALAP), gestão 2013-2014. Foi pesquisador titular da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – ENCE/IBGE entre 2002 e 2019, sendo coordenador da pós-graduação da ENCE/IBGE de 2005 a 2009. Aposentado a partir de 2019. Tem experiência na área de Economia, ciências sociais e Demografia, atuando principalmente nos seguintes temas: família, gênero, fecundidade, direitos reprodutivos, demanda habitacional, bônus demográfico e população e desenvolvimento sustentável
FONTE:
https://www.ecodebate.com.br/2022/05/10/a-crise-climatica-e-a-carestia-alimentar/