Arthur Soffiati
Dentro do corpo dos animais, existem rios que circulam em mão dupla com o pulsar do coração. João Cabral de Melo Neto usa muito a imagem de rios como sistema arterial da Terra. Os rios correm apenas em direção a pontos mais baixos até chegarem ao mar. A evaporação nessas grandes extensões de água salgada devolve aos rios a água doce. Grande parte dessa água deposita-se no subsolo no que conhecemos por lençol freático.
Quase todas as porções de terra emersas são irrigadas por rios grandes, médios e pequenos. Quase todos eles formam um sistema semelhante a uma árvore com seus afluentes, subafluentes e nascentes. Em todo o mundo, as chuvas volumosas estão ultrapassando a capacidade de suporte dos rios, produzindo transbordamento. Essas chuvas decorrem das mudanças climáticas provocadas pela economia de mercado mesmo nos países que proclamavam e proclamam terem rompido com ela, como União Soviética no passado e China atualmente. No extremo oposto às enchentes, ocorrem as estiagens, também derivadas das mudanças climáticas.
Podemos ilustrar a alternância de ingentes estiagens e destruidoras enchentes no território que historicamente recebeu o nome de Rio Grande do Sul dentro de um país que também historicamente recebeu o nome de Brasil no âmbito de um continente batizado de América do Sul. Poderíamos ilustrar os casos de extremos climáticos com a Índia, o Paquistão, o Chifre da África e outros tantos no mundo. Enquanto chuvas copiosas se precipitam no Rio Grande do Sul, o super-tufão Saola na costa oriental da Ásia arrasa o nordeste das Filipinas. Apenas os jornais especializados noticiaram o fenômeno.
Perto de nós, mais uma enchente devastadora ocorreu. Depois de alguns anos de seca intensa no cone sul, o El Niño intensificado pelas mudanças climáticas provoca catástrofes na bacia do rio Taquari. Trata-se de um curso d’água com 390 km de extensão ao todo, pois recebe mais de um nome ao longo do seu trajeto. O rio Paraíba do Sul, mais uma vez tomado como referência, tem 1.137 km de extensão. O dobro do Taquari, mas isso não significa nada de importante. Como quase todo rio do mundo, o Taquari nasce em terreno alto (Serra Gaúcha), recebe afluentes de tamanhos distintos, deságua no rio Jacuí, que chega ao mar pelo Guaíba.
Diferentemente do rio Paraíba do Sul, o rio Taquari é navegável da sua foz à localidade de Muçum, numa extensão de 147 km. É bem verdade que alguns trechos podem ser navegados durante as cheias. Como os demais rios grandes, médios e pequenos em todo o mundo, a bacia do Taquari está povoada de barragens para acumulação e geração de energia elétrica. E, como os demais rios do mundo, a bacia do Taquari sofreu com a remoção da vegetação ciliar, com a erosão das margens – expostas às intempéries – e com o assoreamento. Toda a bacia também foi ocupada por núcleos urbanos que entraram em áreas de preservação permanente como quem entra num banheiro, como é comum nos rios que banham território brasileiro.
Chuvas são um fenômeno comum na natureza. Elas são sempre bem-vindas para alimentar os rios, o solo, o subsolo, as florestas, a vida enfim. Mas com o aquecimento progressivo do planeta, elas estão se tornando virulentas para as atividades humanas. Sabe-se que, no Caribe, sul dos Estados Unidos e costa oriental da Ásia, os ventos fortes são comuns. Eles derivam do aquecimento do mar. O mecanismo natural de controle é a formação de ventos fortes que devolvem a temperatura ao mar. Com o aumento de calor, essas tempestades se tornam mais violentas. Agora, elas estão se tornando comuns no sul do oceano Atlântico. Já ocorreu mais de um ciclone extratropical em 2023, varrendo o sul do Brasil. No início de setembro, o vale do Taquari, principalmente, foi assolado pelo mais destruidor até agora. Os núcleos urbanos mais atingidos foram Muçum, Roca Sales, Cruzeiro do Sul, Lajeado, Estrela, Ibiraiaras, Bom Retiro do Sul, Colinas, Encantado, Imigrante, Mato Castelhano, Passo Fundo e Santa Tereza.
Pessoas perdem tudo ou quase tudo, inclusive a vida. Os depoimentos são tocantes. A maioria diz que vai começar tudo de novo. Uma mulher afetada disse que vai se mudar com os pais. De nada adiante recomeçar para perder tudo novamente. A natureza está mostrando o que fazer, mas poucas pessoas estão percebendo. Inclusive governantes e especialistas. Não é fácil mudar tudo repentinamente. Não dá para reverter a elevação das temperaturas da noite para o dia. Mas algo pode ser feito na terra. Primeiramente, o que já existe, é aprimorar o sistema de alertas. Em segundo lugar é formular planos de evacuação. O atendimento às vítimas ainda está muito caótico. Geralmente, ele se limita a sobrevoos de autoridades, mobilização dos bombeiros, acorrida de voluntários e doações. É o momento de praticar a caridade pública. Está faltando ainda – e talvez por muito tempo ainda – a formulação de planos de adaptação às mudanças climáticas. Passada a tempestade ou a estiagem, a tendência é reconstruir tudo nos locais atingidos. E o pior: nada fazer, como vem acontecendo no litoral de São Paulo depois da histórica tempestade de fevereiro.