Arthur Soffiati |
Não repetiremos o Titanic. Os engenheiros que o conceberam acreditavam piamente que detinham conhecimento e tecnologia insuperáveis para construir um magnífico transatlântico. Pensavam eles que a ciência havia chegado ao final, que nada mais poderia ser concebido. Ora, o Titanic não passava de uma caravela gigante e vulnerável. Alexander Carlise e Thomas Andrews, os engenheiros que o conceberam, não passavam de construtores de barcaças modernas. A Harland and Wolff, estaleiro que o construiu, era uma espécie de Escola de Sagres com aparência moderna, e a empresa White Star Line, que operava o navio, parecia um Cristóvão Colombo do século XX.
Logo na sua primeira viagem, em 1912, o transatlântico inafundável, como se dizia, afundou. Chocou-se com um iceberg e naufragou. Morreu muita gente. Havia uma série de pontos vulneráveis quanto à segurança do navio. Anotamos tudo e não repetiremos os erros. O mundo agora é outro. Avançamos muito em termos de tecnologia. Enviamos naves ao espaço. Levamos humanos à Lua. Chegamos a outros planetas do sistema solar e já saímos em direção a pontos distantes do cosmos. Vejam agora. Colocamos em atividade o telescópio espacial James Webb. Ele é capaz de captar imagens não apenas no espaço, mas no tempo. Pode recuar às origens do Universo. Imagine o que é voltar 13 bilhões de anos no tempo e surpreender o Universo em seus primórdios!
Agora sim, creio que chegamos ao máximo em termos de ciência e tecnologia. Claro que sempre se pode aperfeiçoar. Mas já estamos a caminho de conquistar o Universo. Não apenas o nosso sistema solar e a nossa galáxia. Reconheço que estragamos a Terra, mas foi necessário. O aperfeiçoamento da tecnologia tem seu preço. Estragamos e podemos consertar. Ainda encontramos espíritos tacanhos. Essas pessoas saudosistas, esquerdistas, ecologistas, sei lá, é tanto ismo que não convém memorizar o nome de todos. Aliás, para quê memorizar se podemos transferir todas as informações para supercomputadores? Sejamos otimistas.
Mas vamos ao que interessa. Vamos ao super–transatlântico, já a caminho em nossos laboratórios. Estaleiros? É coisa do passado. Como assim? Transatlântico numa época dessa? Sim. Ainda existe mar. Ainda estamos no planeta Terra. De fato, não precisaríamos de um navio invulnerável. Podemos cruzar o mundo em nossos magníficos aviões. Já temos até naves espaciais preparadas para isso. A questão é que temos um ajuste de contas com o passado. O naufrágio do Titanic por colisão com um iceberg foi uma desonra para a nossa tecnologia. O afundamento dele desmoralizou a superioridade ocidental, hoje distribuída pelo mundo todo, mas em outros lugares ainda inferior à dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Como? A guerra da Ucrânia? Ora, devemos reconhecer que ainda existem países atrasados no mundo de hoje. A Rússia é um exemplo. Mas superaremos isso tudo ao deixarmos esse planeta e construirmos uma civilização perfeita em outro. Antes, lançaremos o Invictus no mar para mostramos a nossa superioridade.
Muito bem, vamos inaugurar o Invictus à moda antiga, quebrando uma garrafa de champanhe em seu casco. É só um gesto simbólico. Escolhemos passageiros de todas as classes sociais. A viagem será gratuita. Não queremos ganhar dinheiro. Não precisamos. Nem mesmo com esse navio. É só uma questão de ajuste com o passado. Convidamos um pescador para avalizar a embarcação, assim como engenheiros e leigos. Mas, de antemão, temos certeza de que nenhum obstáculo vai nos deter. Nem iceberg, nem rochedo, nem um míssil da Rússia.
Boa viagem a todos, todas e todes. Acompanharemos a travessia Nova Iorque-Londres por satélites e computadores. E aquele monstro marinho singra as águas tranquilamente, soberano. Desafia mesmo os obstáculos, passando perto de rochedos e iceberg. Os marinheiros foram educados para exibir arrogância tecnológica diante da natureza. Mas o pescador os alertou a evitar esses perigos desnecessariamente, só por exibicionismo. De maneira antiga, disse que não se deve abusar. Falou com o comandante que Deus protege os humildes. Ora Deus, pensou o comandante. Nem Deus pode nos deter. Mas o que é isso? Que ruído é esse? Quero informação de todos os computadores. Como, um rochedo furou o casco? Como assim? Deve haver engano. Está fazendo água? Vai afundar? Não é possível. Deem um jeito. Afinal, o Invictus é o triunfo da tecnologia sobre a natureza.
Toca para a esquerda em direção à costa, disse o pescador. Vamos encalhar o navio numa ilha. Conheço bem essa região. E que todos os passageiros rezem, cada um na sua crença, para Deus nos ajudar. Vamos encalhar essa “maravilha”. A gente perde o navio mas não perde a vida. Esses caras nunca vão aprender que o homem é limitado e que sempre deve respeitar a natureza.