Cristina Ávila e Leanderson Lima | Amazônia Real |
“Nunca mais o Brasil sem nós”, disse Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas. “Não recuaremos, não retrocederemos, não vamos baixar a cabeça mais, não saíremos daqui”, afirmou Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial. Na cerimônia de dupla transmissão de cargos, prestigiada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), reinou o espírito de resistência não só em palavras, mas em gestos. O evento foi o primeiro a ocorrer no Palácio do Planalto, um dos palcos da invasão e depredação por parte de terroristas bolsonaristas no último domingo (8).
A cerimônia, cercada de muitos simbolismos, durou quase duas horas e contou com a presença de muitos ministros, entre eles Silvio Almeida (Direitos Humanos), Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima), Flávio Dino (Justiça e Segurança), Nísia Trindade (Saúde), Rui Costa (Casa Civil) e Camilo Santana (Educação). No palco, também se fizeram presentes Joênia Wapichana, futura presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (o novo nome da Funai), e a liderança Davi Kopenawa Yanomami. Antes mesmo das falas, o Hino Nacional foi entoado na língua Tikuna e em português.
No discurso de posse, Sonia Guajajara lembrou que a criação do Ministério dos Povos Indígenas sinaliza ao mundo o compromisso do Estado brasileiro com a emergência e justiça climática, além de ressaltar o caráter de uma reparação histórica e que o momento é de “retomada de uma força ancestral”. “Invisibilidade secular que impacta e impactou diretamente as políticas públicas do Estado é fruto do racismo, da desigualdade e de uma democracia de baixa representatividade, que provocou uma intensa invisibilidade institucional, política e social, nos colocando na triste paisagem das sub-representações e sub-notificações sociais do País. São séculos de violências e violações e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas”, discursou Sonia Guajajara.
Sonia Guajajara lembrou ainda do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Philips, mortos em junho de 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), no Vale do Javari. “Preciso destacar a força de Bruno Pereira e Dom Philips, em memória de quem saúdo todos os nossos aliados e aliadas defensores do meio ambiente e dos direitos humanos”, disse.“Sabemos que não será fácil superar 522 anos em 4. Mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros”, disse a ministra, que lembrou da presença indígena em todo o País.
“Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês puderem imaginar. Vivemos no mesmo tempo e espaço que qualquer um de vocês, somos contemporâneos deste presente e vamos construir o Brasil do futuro, porque o futuro do planeta é ancestral”, afirmou a ministra dos Povos Indígenas.
Para apresentar a ministra Sonia Guajajara, a deputada federal eleita Célia Xabriabá (PSol-MG) ressaltou a luta das mulheres. “Somos mulheres parteiras, benzedeiras, ministras politizadas, fazemos enfrentamento, embora não sejamos belas ou recatadas. Não somos recatadas, muitas vezes nem estamos ou somos do lar, temos um pé no chão da aldeia e o outro do lado de cá”, disse. “Esse ministério é novo, mas na verdade esse ministério é ancestral.” Sonia se dirigiu, com lágrimas, ao púlpito, tocando a maracá. Com a conclusão das duas últimas cerimônias de transmissão de cargo, ficou patente o espírito anti-democrático do governo Bolsonaro, cujos ex-ministros não participaram de nenhuma cerimônia de transmissão de posse para seus sucessores, como é de praxe nessas ocasiões.
De volta ao Palácio do Planalto
Cerca de 40 indígenas Guajajara se credenciaram para assistir à posse da ministra dos povos indígenas, inclusive pais, filhos e parentes próximos. O vereador José Arão Guajajara, do território Bacurizinho, conta que pelo menos 100 estão em Brasília com outros ainda chegando não apenas para posse, mas para cumprir agendas no novo ministério e com a presidente da Funai, Joênia Wapichana. Eles deveriam ter começado seus compromissos antes, mas foram atrapalhados pelos ataques terroristas que ocorreram e ainda rondam Brasília – nesta quarta-feira (11), havia rumores de atos na Esplanada dos Ministérios, que foi isolada pelas polícias.
A posse das duas ministras ocorreu um pouco depois do horário previsto, com o Palácio do Planalto impecavelmente limpo, pelo menos no trajeto entre o andar térreo e o segundo andar onde aconteceu a cerimônia. Nem de longe o ambiente e a alegria das pessoas lembravam a destruição provocada por bolsonaristas que reivindicam a ruptura institucional por meio de um golpe de Estado.
Por volta das 15 horas, muitos povos já estavam na porta do Palácio do Planalto, em ritos culturais onde se enfatizava o som dos maracás e as línguas maternas, com ênfase de trechos em português em que se destacavam frases como “Deus proteja minha ministra pra ter força para a luta, Deus proteja meu pajé”. Muitos povos do Nordeste e também de etnias históricas do movimento indígenas como Xavante, Kayapó, Pataxó, Krikati e muitos outros. Os índigena Terena, após o discurso, dançaram o canto da ema e carregaram a
Por volta das 15 horas, muitos povos já estavam na porta do Palácio do Planalto, em ritos culturais onde se enfatizava o som dos maracás e as línguas maternas, com ênfase de trechos em português em que se destacavam frases como “Deus proteja minha ministra pra ter força para a luta, Deus proteja meu pajé”. Muitos povos do Nordeste e também de etnias históricas do movimento indígenas como Xavante, Kayapó, Pataxó, Krikati e muitos outros. Os índigena Terena, após o discurso, dançaram o canto da ema e carregaram a ministra dos Povos Indígenas.
“Foram anos muito difíceis”, acrescentou José Arão, que como outros indígenas de vários territórios da Amazônia e do resto do País se identificaram com cocares, colares e pinturas corporais. “Nosso povo Guajajara tem pouco mais de 300 anos de contato e este momento aqui como autoridade das maiores do País é a reparação de 522 anos de extermínios. É um momento ímpar que representa o respeito do governo Lula não apenas por direito de Estado, mas por nossos direitos originários”.
Já no salão de eventos também foi ouvido o canto já bastante conhecido nas lutas indígenas. “Quem não pode com formiga, não atiça o formigueiro”, cantaram antes da fala da ministra Sonia Guajajara. Os gritos lembram os acampamentos em Brasília, como o ATL, a Marcha das Mulheres e os de enfrentamento ao marco temporal, uma real ameaça aos territórios indígenas não-demarcados.
Presença indígena
Uma dezena de parentes de Sonia, ex-líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), se concentraram nas cadeiras mais próximas do palco e local de apresentação de rituais. O irmão da ministra, o jornalista Erisvan Bone, disse que o Ministério dos Povos Indígenas começará uma série de reuniões para tratar de questões fundamentais, como as demarcações de terras urgentes prometidas pelo presidente Lula e a retirada de invasores do território Yanomami. Entre os principais temas a serem enfrentados está também o marco temporal. “A ministra deverá promover uma reunião com deputados aliados para tratar desse assunto”, contou ele à Amazônia Real. Contou também que logo após este dia de posse deverá também começar a ser planejado o Acampamento Terra Livre, que acontece sempre em abril.
A prima da ministra Sonia, Cintia Guajajara, também estava nas primeiras cadeiras próxima ao lado direito do palco e do centro de apresentações culturais. Ela é presidente do Conselho da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab) e coordenadora da Articulação das Mulheres Indígenas do Maranhão. “Este momento representa resistência”, disse, erguendo o braço com o punho fechado. “As mulheres Guajajara são guerreiras. Não têm medo de qualquer desafio. Saem da terra em busca de conhecimento, como conhecimento acadêmico, mas levamos conosco os ensinamentos da ancestralidade. Isso é resistência. Temos espírito de liderança.”
Cintia apontou ao seu lado outra das mulheres guerreiras do movimento nacional: Puyr Tembé, da Terra Indígena Alto Rio Guamá, aldeia São Pedro, do Pará. Ela é presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa). “O Brasil nunca viveu isso. É o País que queremos construir”, disse com lágrimas nos olhos. Para ela, a composição dos ministérios do governo Lula foi considerada muito representativa do povo brasileiro. “Muito além das cotas de representações, traz inserção verdadeira de muitos segmentos, para uma gestão conjunta de governo.”
Txai Suruí também assistiu à posse e celebrou o momento. “Um momento bom de se encontrar”, disse, referindo-se à felicidade pela posse de Sonia e Anielle, mas também aos encontros tensos vividos em Brasília desde 2021. Ela disse que uma de suas preocupações é a necessidade de inteligência estratégica para enfrentamento ao bolsonarismo. “Nos dias em que os bolsonaristas queimaram ônibus em Brasília, também queimaram em Porto Velho (capital de Rondônia). As políticas sociais e ambientais que precisamos implementar não serão executadas somente pelo governo federal, mas também por estados e municípios.” A única brasileira que falou na Conferência da Cúpula do Clima (COP26) ainda lembrou que os estados da Amazônia com maiores representações políticas à direita são também os mais desmatados e com mais violências contra povos tradicionais.
O coordenador do Coletivo de Entidades Negras que faz parte da organização nacional do Movimento Negro, Luiz Paulo Bastos, também considerou significativos “os sinais de avanço” deste mandato do presidente Lula, que tem apenas 11 dias de existência. Ele citou especialmente a lei assinada durante a posse das duas mulheres ministras, que equipara injúria racial e racismo. “O crime de injúria racial tem como fundo o racismo”. Bastos afirmou que a distinção trazia “um tecnicismo que não traduzia a realidade” e explicou que a primeira se tratava de questões que atingiam a moral, como xingamentos, e a segunda se refletia como forma de barreira, como segregação física. Considera que a mudança muda a impunidade de crimes raciais. “Precisamos ser princípio, meio e fim das políticas públicas, que devem nascer com o olhar da realidade negra e serem executadas para as populações negras, e com o combate ao racismo. Não só para negros, mas pelas maiorias minorizadas pelo patriarcado branco”.
A fala de Anielle Franco
Na sua vez, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, também lembrou dos ataques terroristas ocorridos em Brasília. “Depois dos atentados sofridos por esta casa e pelo povo brasileiro no último domingo, pisamos aqui em sinal de resistência a toda e qualquer tentativa de atacar as instituições e a nossa democracia. O fascismo, assim como o racismo, é um mal a ser combatido em nossa sociedade”, declarou.
A nova ministra ressaltou a necessidade da luta contra a desigualdade racial. “Não podemos mais ignorar ou subestimar o fato de que a raça e a etnia são determinantes para a desigualdade de oportunidades no Brasil em todos os âmbitos da vida. Pessoas negras estão sub-representadas nos espaços de poder e, em contrapartida, somos as que mais estamos nos espaços de estigmatização e vulnerabilidade”, pontuou Anielle.
Um dos momentos mais emocionantes do seu discurso, foi quando lembrou o assassinato brutal de sua irmã, a vereadora Marielle Franco, em 2018, no Rio de Janeiro. “Nós estamos aqui porque a gente tem um projeto de País, um projeto de País onde uma mulher negra possa acessar e permanecer em diferentes espaços de tomada de decisão sem ter a sua vida ceifada com cinco tiros na cabeça”, emocionou-se. Nesse momento, a plateia se levantou e gritou diversas vezes “Marielle, presente”.
A ministra dos Povos Indígenas também citou os atentados ao Palácio do Planalto, ao Congresso e à sede do Supremo Tribunal Federal (STF). “Estamos de pé para mostrar que nós não iremos nos render. A nossa posse aqui, hoje, a minha e a de Anielle Franco, é o mais legítimo símbolo dessa resistência secular preta e indígena do nosso Brasil. Destruir essa estrutura do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional não vai destruir a nossa democracia”, disse.
As duas ministras aproveitaram a cerimônia, quando Lula não discursou, para anunciar os novos integrantes de suas pastas. Sonia Guajajara anunciou o advogado Eloy Terena como secretário-executivo; Jozi Kaigang, chefe de gabinete; Eunice Kerexu, secretária de Direitos Ambientais e Territoriais; Ceiça Pitaguary, secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena; Marcos Xucuru, assessor especial do Ministério; e Juma Xipaia, como secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas.
Já Anielle anunciou terá Flávia Tambor, como chefe de gabinete; Roberta Eugênio, na Secretaria Executiva; Iêda Leal, na Secretaria de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial; Ronaldo dos Santos, como secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, Povos de Terreiros e Ciganos; e Márcia Lima, da Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo.
Na manhã desta quarta-feira, Lula teve um encontro com o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), e anunciou que Belém será sede da 30ª Conferência das Nações Undias sobre as Mudanças Climáticas (COP30), caso a ONU oficialize o Brasil para receber o evento pela primeira vez. O Brasil já poderia ter sediado a COP25, em 2019, proposta pelo ex-presidente Michel Temer (MDB). Mas tão logo assumiu, Bolsonaro cancelou a candidatura do País e nas edições seguintes fez com que a participação brasileira se reduzisse à insignificância.
Quem são as ministras
Nascida nas terras indígenas de Araribóia, no Maranhão, Sonia Guajajara é formada em Letras e Enfermagem, e tem pós-graduação em Educação Especial. Em 2022, candidatou-se a deputada federal pelo Psol e foi eleita por São Paulo com 156 mil votos. Em seu discurso de posse, Sonia lembrou que começou a vida como babá e empregada doméstica.
A sua militância em favor dos povos indígenas e do meio ambiente, fez dela uma personalidade reconhecida internacionalmente. Desde 2009, ela denuncia violações aos povos indígenas no Conselho de Direitos Humanos da ONU, além de levar a sua voz às Conferências Mundiais do Clima (COP).
Por conta dessa atuação firme, em 2022, marcou presença na famosa lista das 100 pessoas mais influentes do mundo, publicada pela revista norte-americana Time, como fez questão de lembrar Célia Xabriabá.
Sonia também recebeu os prêmios Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura, em 2015; Medalha 18 de Janeiro pelo Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo e Medalha Honra ao Mérito do Governo do Estado do Maranhão; Prêmio João Canuto pelos Direitos Humanos da Amazônia e da Liberdade da Organização Movimento Humanos Direitos, em 2018 e o prêmio Packard concedido pela Comissão Mundial de áreas protegidas da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN), em 2019.
Já Anielle Franco tem uma longa história de ativismo, reforçando em seu discurso a importância do esporte e da educação na sua formação. Ela é educadora, ativista e já foi jogadora de vôlei. Hoje, faz parte do seleto grupo de brasileiros que foram selecionados, em 2021, para o Ford Global Fellow, programa da Fundação Ford voltado ao desenvolvimento e fortalecimento de lideranças globais. Ela é também diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, responsável por desenvolver projetos sociais no complexo da favela da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro.
FONTE AMAZÔNIA REAL
https://amazoniareal.com.br/ministras-sonia-guajajara-e-anielle-franco/