A ideia de que a crise climática afeta os brasileiros de maneira desigual não é nova. Reportagens sobre enchentes, secas, deslizamentos e ondas de calor, para citar alguns dos impactos mais extremos da mudança do clima, são transmitidas por todo o país, mostrando que os principais afetados são aqueles que menos contribuem para o problema: populações mais carentes, já desprovidas de acesso a moradia de qualidade, saneamento básico e serviços públicos essenciais. No entanto, se isso acontece em regiões onde, historicamente, as políticas públicas do Estado têm uma influência mais direta, de que forma esses efeitos são sentidos em lugares mais distantes, como a região Norte?
Belém, que em 2025 sedia a COP30, será a primeira cidade amazônica a receber uma Conferência global do clima — e, paradoxalmente, um exemplo vivo dos riscos que a própria Conferência busca enfrentar. Com pouco mais de 1,3 milhão de habitantes e localizada às margens da Baía do Guajará, Belém é uma cidade marcada por contrastes: conhecida por sua riqueza histórica, cultural e gastronômica, apresenta alguns dos piores índices de urbanismo entre as capitais brasileiras.
Menos de 20% da população tem acesso à rede de esgoto e quase metade não conta com coleta adequada de resíduos. A taxa de arborização urbana é de apenas 22%, e o sistema de transporte público é considerado ineficiente, com forte dependência de ônibus e pouca integração modal. Além disso, Belém enfrenta elevados índices de desigualdade social e um dos maiores custos de energia elétrica do país, fatores que ampliam os desafios para o desenvolvimento da cidade. Esses índices colocam Belém entre as capitais menos preparadas do país para enfrentar eventos climáticos extremos.
Mas um dos principais desafios da cidade, intensificado pela crise climática, é o calor. O aumento progressivo das temperaturas médias, ano após ano, faz com que a população de Belém já sinta os efeitos da mudança do clima em seu cotidiano. Chuvas mais intensas, alagamentos recorrentes e a sobrecarga da infraestrutura têm impactado a vida de milhares de moradores, alterando rotinas e evidenciando a vulnerabilidade urbana. Pesquisas regionais, nacionais e internacionais apontam que os extremos climáticos estão se intensificando na Amazônia, ampliando ainda mais os riscos para a cidade.
Calor mais intenso
Em novembro de 2024, Belém registrou médias máximas de 35,9 °C e mínimas de 24,3 °C na estação do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), reforçando a tendência de noites
mais quentes e maior desconforto térmico urbano. Séries históricas mostram que a temperatura máxima média na cidade já subiu cerca de 1,9 °C entre 1970 e 2023, ultrapassando o limite de 1,5 °C estabelecido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Pará (UFPA) identificou a presença de ilhas de calor urbanas, associadas à baixa arborização e à impermeabilização do solo, que agravam ainda mais a sensação térmica em bairros densamente ocupados como as periferias, que chegam a apresentar até 4 °C a mais que outras partes da cidade. O fenômeno expõe um padrão de desigualdade ambiental comum nas grandes cidades do Sul Global — onde os bairros mais pobres são também os mais quentes e menos arborizados.
Esse aumento não é apenas uma estatística climática: ele já reconfigura o cotidiano de Belém. O Ministério da Saúde alerta que ondas de calor aumentam casos de desidratação, doenças cardiovasculares e respiratórias, além de favorecerem distúrbios de saúde mental. Em Belém, hospitais e clínicas já discutem estratégias de adaptação diante do aumento da demanda por atendimento em dias mais quentes. Economicamente, a elevação da temperatura compromete a produtividade de trabalhadores que atuam ao ar livre, como vendedores ambulantes e extrativistas da Ilha do Combu, que já relatam perdas em atividades como a coleta de sementes de andiroba devido ao calor excessivo.
“Este ano, começamos a sentir o impacto do aquecimento global. A produção diminuiu significativamente, e tivemos que nos adaptar, trabalhando com outros recursos, como a folha de cacau”, explica Dayse Soares, integrante da Associação das Mulheres Extrativistas do Combu (AME). O depoimento ilustra a interconexão entre clima urbano e economia extrativista — duas dimensões que raramente se cruzam no debate público, mas que se encontram na vida real das comunidades ribeirinhas.
Projeções indicam que Belém poderá enfrentar mais de 220 dias de calor extremo por ano até 2050, tornando essa condição um desafio permanente para a saúde pública, a economia e a própria habitabilidade da cidade.
Chuvas intensas e alagamentos
Belém é uma das cidades mais chuvosas do Brasil, mas seu regime pluviométrico tem sofrido alterações alarmantes. As alterações tornaram a chuva um fator de risco constante e um lembrete diário de que a cidade está no limite de sua capacidade de adaptação.
Em janeiro de 2025, por exemplo, a cidade recebeu 417 mm de chuva, valor acima da média histórica para o mês, segundo o INMET. O volume, somado à concentração em poucos dias, gerou alagamentos em diversos pontos da cidade, além de sobrecarregar a infraestrutura. O Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN) chegou a emitir alertas de risco de inundações para a capital, indicando a possibilidade de extravasamento de canais e prejuízos consideráveis em pontos críticos.
Segundo especialistas da UEPA e da UFPA, o principal problema não é o volume de chuva, mas a incapacidade do solo e do sistema de drenagem de absorvê-la. A cidade possui 125 áreas oficialmente classificadas como de risco, das quais 76 são sujeitas a alagamentos e
49 a processos de erosão costeira. Um dos pontos mais críticos é a Bacia da Estrada Nova, que contempla os bairros do Guamá, Cremação, Condor, São Brás, Jurunas e Cidade Velha.
De acordo com o Programa de Saneamento da Bacia da Estrada Nova (PROMABEN), mais de 35% da área da bacia alaga constantemente, afetando diretamente cerca de 5 mil famílias, aproximadamente 30 mil pessoas. Um estudo, realizado em 2024 pela Universidade do Estado do Pará (UEPA), apontou que mais de 70% da área da Bacia da Estrada Nova é inundável, evidenciando a vulnerabilidade estrutural de um território central na vida dos belenenses.
Outros bairros também enfrentam este problema. Em abril de 2024, uma chuva combinada com maré alta deixou áreas dos bairros Umarizal e Campina alagadas, interrompendo o trânsito, prejudicando o comércio e forçando moradores a improvisar passagens em ruas tomadas pela água. Esses episódios mostram que o problema não se restringe às baixadas periféricas, mas afeta diretamente regiões centrais, reforçando a fragilidade do sistema urbano de drenagem.
Uma vez que a situação é ainda mais grave quando as chuvas intensas coincidem com marés elevadas, a Prefeitura de Belém definiu como crítico o risco quando a maré ultrapassa 3,5 metros. Em março de 2024, a cidade registrou marés de até 3,7 metros, coincidindo com temporais e resultando em alagamentos em diversos pontos. O evento voltou a ocorrer em 2025, causando novamente estragos em áreas críticas da cidade, ao passo em que o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) projeta maior frequência de inundações costeiras na região durante as próximas décadas.
Esses extremos climáticos têm efeitos imediatos na vida cotidiana, incluindo perda de bens materiais, quedas no faturamento de lojas e feiras em dias de enchente, além da paralisação da mobilidade urbana. Para os moradores mais pobres, que vivem em casas sem proteção adequada contra a água, os prejuízos são constantes e cumulativos.
Saúde pública e vulnerabilidade social
O colapso da saúde pública é o reflexo mais imediato da crise climática em Belém. As chuvas intensas e os alagamentos ampliam a exposição a doenças transmitidas por vetores, como dengue, zika e chikungunya, que se proliferam em água parada. De acordo com dados da Secretaria de Estado de Saúde Pública, até julho de 2025 o Pará registrou 11.421 casos de dengue, além de 252 casos de chikungunya e 17 de zika, com Belém entre as cidades mais afetadas. Este Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde aponta que o calor mais intenso e a alta umidade favorecem a reprodução do Aedes aegypti, prolongando o período de risco ao longo do ano.
Além das arboviroses, os alagamentos recorrentes aumentam os casos de leptospirose, transmitida pelo contato com água contaminada pela urina de roedores, e elevam também o risco de hepatite A e diarreias infecciosas ligadas à ingestão de água e alimentos contaminados. Esses surtos ocorrem principalmente em áreas de baixada e palafitas, devido à falta de saneamento básico.
Em comunidades de palafitas e baixadas, a linha entre enchente e epidemia é cada vez mais tênue. Os impactos afetam principalmente famílias de baixa renda, que vivem em áreas sujeitas a alagamentos frequentes, com coleta de lixo irregular e sem infraestrutura adequada de drenagem. Nessas comunidades, uma enchente não significa apenas a perda de bens materiais, mas também a exposição imediata de efeitos negativos na saúde. O risco é ainda maior para crianças e idosos, uma vez que são mais suscetíveis a infecções e complicações.
Infraestrutura e serviços urbanos
Os impactos das mudanças climáticas em Belém são agravados pelas dificuldades estruturais da cidade, um desafio comum em cidades brasileiras e amplificado na região. Grande parte da população ainda depende de canais a céu aberto e sistemas de drenagem antigos, que estão frequentemente obstruídos por lixo. A impermeabilização do solo, somada ao déficit de coleta de esgoto, reduz drasticamente a capacidade de escoamento da água da chuva. Como o território de Belém é entrecortado por riachos e igarapés, cada chuva mais intensa pode transformar ruas em rios.
Além do PROMABEN, também foram inauguradas outras obras de macrodrenagem em canais estratégicos da cidade nos últimos anos. Entre os exemplos, podemos citar a intervenção no sistema da Vileta e Leal Martins, no bairro do Marco, e a reurbanização do Canal das Malvinas, onde foram reconstruídos 520 metros de drenagem e contenção para reduzir enchentes recorrentes. Também estão em andamento obras de drenagem profunda nas avenidas Duque de Caxias e Brigadeiro Protásio, nos bairros Marco e Souza, para ampliar o escoamento pluvial.
Mesmo com as obras em curso, estudos apontam que a drenagem urbana e o saneamento em Belém permanecem abaixo das necessidades, especialmente nas áreas de periferia ocupadas por famílias de baixa renda. Um artigo, publicado em 2022, apontou que embora o PROMABEN tenha trazido avanços pontuais, a cobertura de esgoto segue crítica, e os esgotos coletados continuam sem tratamento adequado. As pesquisadoras concluíram que as obras de macrodrenagem reduziram riscos imediatos, mas não mudaram estruturalmente a vulnerabilidade sanitária, já que a drenagem e o saneamento básico continuam insuficientes para enfrentar eventos climáticos mais intensos, cada vez mais prováveis de acontecer no futuro da cidade.
Belém simboliza um dilema que estará no centro da COP30: como financiar a adaptação climática em cidades tropicais, onde o desafio não é só reduzir emissões, mas garantir condições básicas de vida diante de um clima cada vez mais hostil.



