Ricardo Abramovay || Professor Titular do Departamento de Economia da FEA. Autor de “Muito Além da Economia Verde” (Ed. Planeta Sustentável, SP, 2012). Coautor de “Lixo Zero: Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera”.
O coração de Albert Hirschman, um dos mais respeitados economistas do Século XX, batia mais forte cada vez que, em suas pesquisas, ele encontrava rotas de desenvolvimento que contrariavam o previsto nos manuais. Em 1983, ele viajou por seis países da América Latina visitando experiências de base (“grassroots development”) financiadas pela Fundação Interamericana. Não era uma avaliação e sim o esforço de compreender o que, em sua obra, ficou conhecido como “sequências invertidas” ou “carro à frente dos bois”. O fator que chamava sua atenção e motivou sua viagem não fazia parte da pauta habitual dos economistas de seu tempo: o papel do ativismo social no processo de desenvolvimento.
O tema ganha imensa atualidade em virtude da promessa e do empenho de governos autoritários de “acabar com o ativismo”. Na Hungria, na Polônia, na Rússia, na Turquia, na Índia, mas também no Brasil esta promessa faz parte da propaganda eleitoral e vem sendo cumprida à risca. A justificativa oficial é duplamente enganosa: por um lado, organizações não governamentais praticantes de ativismo social são caracterizadas como sugadoras de recursos públicos, que acabam sendo usados em benefício de seus membros, por ausência de escrutínio público na sua gestão. Por outro, como estes recursos, muitas vezes provêm de fontes externas e como ninguém oferece dinheiro sem exigir algo em troca, parece evidente que estas organizações não passam de pontas de lança de interesses estrangeiros.
Não foi isso que Hirschman encontrou durante as catorze semanas em que visitou experiências de base. Assim que terminou seu périplo, ele passou um mês no Brasil, onde escreveu Getting Ahead Collectively. O livro mostra basicamente um conjunto variado de iniciativas coletivas (em educação, habitação popular, empreendedorismo, esportes, agricultura e combate a catástrofes naturais) voltadas a melhorar a vida das pessoas. Os ativistas que Hirschman encontrou não estavam interessados em “tomar o poder”, em franco contraste com a geração que participou ativamente dos movimentos guerrilheiros que marcaram os anos 1960 e o início dos anos 1970 em vários países do Continente. A vida de muitos jovens latino-americanos de classe média, com boa formação profissional e sensíveis às imensas desigualdades que marcavam suas sociedades, encontrou no ativismo voltado ao fortalecimento de iniciativas coletivas de base, um sentido decisivo para eles próprios, mas também para o processo de desenvolvimento.
Hirschman reconhece em seu livro que a ligação entre ativismo e desenvolvimento ainda não estava bem compreendida. Mas ele não tinha dúvida de que a rede de ativistas atuando no Continente tinha tornado “as relações sociais mais providas de cuidado e menos privadas”.
Aruanas, série de ficção que a Globoplay lançou no Brasil e mais 150 países, no dia 2 de julho, em que ativistas enfrentam uma grande mineradora cujas práticas ferem direitos de populações tradicionais e ameaçam a floresta, são uma excelente ocasião para que a sociedade brasileira conheça o que é o ativismo, particularmente na Amazônia. Aruanas abre caminho para a pergunta inspirada no trabalho de Hirschman: qual a “sequência invertida” que o ativismo na Amazônia hoje sugere?
A sequência convencional é conhecida: a Amazônia vem sendo ocupada por pastagens de baixa produtividade, por invasão sistemática a áreas protegidas e pela criminalidade que acompanha a grilagem de terras, a mineração clandestina em larga escala e a exploração madeireira predatória sem respeito aos mínimos critérios de racionalidade econômica. Diante disso, qual a importância do ativismo?
Em primeiro lugar está a denúncia destas atrocidades, que estão aumentando, nos últimos meses. Mas, mais que isso, o ativismo se tornou o vetor da elaboração de alternativas muito mais promissoras que as práticas atuais. O contato estreito dos ativistas com as populações tradicionais permite um conhecimento dos potenciais econômicos dos recursos da floresta sobre a base do qual surgem projetos economicamente consistentes e mais rentáveis que os atualmente dominantes. Isso passa pelo uso de sementes nativas no reflorestamento, pela formação de cadeias de valor dos produtos da floresta, pela pesquisa em fármacos e cosméticos e por inúmeras atividades econômicas cujo ponto de partida está em dois princípios éticos: o respeito aos povos da floresta e a substituição do que tem sido, até aqui, a economia da destruição da natureza por uma economia do conhecimento da natureza.
É esta “sequência invertida” que os ativistas da Amazônia estão fazendo emergir. Não é por outra razão que muitos deles estão próximos a organizações empresariais que, igualmente, encaram na economia da floresta em pé o caminho para que o crescimento da Amazônia favoreça as populações que lá habitam e ofereça ao mundo os serviços ecossistêmicos de que todos dependemos.
Mas sem os ativistas, este caminho não será trilhado. A economia apoiada na valorização sustentável da biodiversidade e no respeito às culturas dos povos da floresta não é sinônimo de paralisia econômica. Ao contrário, são elas as que podem abrir caminho para que o Brasil aplique as mais avançadas tecnologias contemporâneas no conhecimento dos potenciais oferecidos por nossa maior riqueza. E é importante sublinhar que, contrariamente a uma ideia tão frequentemente difundida, exatamente por saberem o quanto esta rota fere interesses consolidados, as ONGs apoiam-se em sistemas de governança, de avaliação e de prestação de contas que respondem aos mais rigorosos critérios internacionais.
O Brasil tem a oportunidade única de fazer da junção entre ciência, princípios éticos de solidariedade e respeito às culturas dos povos tradicionais a base do desenvolvimento da Amazônia. Mas isso supõe um ativismo forte e combativo, sem o quê, os métodos destrutivos atuais vão-se perenizar.
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