Aquele litoral paradisíaco encontrado pelos navegadores portugueses no século XVI não existe mais. Em alguns pontos até existe. São remanescentes da obra da natureza, mas já sofreram algum tipo de intervenção humana. Para os olhos e para a alma, aquela combinação de montanha coberta por uma pujante mata com uma estreita planície entre ela e o mar enchia os olhos. Pequenos rios desembocavam no mar orlados de manguezais.
Mas não eram paisagens belas que os europeus buscavam fora dos seus países de origem a partir do século XV. Eles queriam ganhar dinheiro. A floresta continha riquezas monetárias embutidas. A primeira foi o pau-brasil. A segunda foi a terra sob os bosques. Derrubando as árvores, o solo para o cultivo de cana-de-açúcar estava livre. E ainda gerava-se lenha e madeira. Não sem motivo, a primeira vila fundadas por portugueses no Brasil, inaugurando o período colonial, foi levantada nesse litoral majestoso. Trata-se da vila de São Vicente, erguida em 1532.
A partir de então, essa costa foi sendo urbanizada. Ubatuba e Cananeia são seus limites. Entre eles, São Sebastião, Bertioga, Guarujá, Santos, São Vicente, Itanhaém, Peruíbe e Guaraú. Ainda restam grandes extensões nativas no litoral paulista. Que se veja a grande planície irrigada pelos rios Una e Iguape. Em outros pontos, contudo, a concentração urbana é muito grande, como em São Sebastião, Guarujá, Santos e São Vicente. Nessas três últimas cidades já existe uma conurbação. O litoral foi ligado ao interior, no planalto, por várias estradas que facilitaram o acesso às praias da baixada nos finais de semana e depois a fixação de moradores. A Rio-Santos se estende paralela ao litoral.
Então, ricos e integrantes da classe média construíram casas para residência permanente ou para veraneio de finais de semana. Atrás dos ricos, vieram os pobres, como é comum acontecer numa economia de mercado. O solo em lugares apropriados era e é caro. Que os pobres ocupem margens de rios e encostas de montanhas. Que as águas pluviais sejam poluídas e as florestas derrubadas. Que as rodovias sejam construídas em lugares frágeis e perigosos. Nossa tecnologia é capaz de vencer os mais desafiadores obstáculos da natureza. Um mapa de São Vicente produzido durante o mandato do prefeito Rodolpho Mikulasch (1938 a 1941) ilustra uma realidade urbana bem diferente da atual. Na década de 1940, São Vicente e os municípios vizinhos ainda guardavam muitos remanescentes de sua paisagem nativa com caiçaras vivendo da pesca.
De lá aos dias que correm, dois problemas ambientais adquiriram proporções ameaçadoras. Por cima, as mudanças climáticas. Por baixo, uma urbanização descontrolada que bem reflete as desigualdades da sociedade. As mudanças climáticas começaram com a liberação de gás carbônico pelo desmatamento, já no século XVI, e se intensificaram com o lançamento de vários gases na atmosfera a partir da revolução industrial, acentuando-se depois de Segunda Guerra Mundial. Por baixo, alterações temerárias da paisagem, como abertura de rodovias passando por locais de cursos d´água selvagens e topografias indomáveis. E cidades em que as construções legalizadas situam-se em lugares com relativa segurança e construções irregulares em áreas de risco. Riqueza e pobreza.
O cenário se torna vulnerável para fenômenos climáticos extremos, como secas e tempestades. Os cinco anos mais chuvosos desde o início dos registros meteorológicos mundiais ocorreram nos últimos dez anos. As regiões intertropicais têm sido duramente bombardeadas pelas chuvas e pelas secas. Por sua extensão territorial, o Brasil é um dos países mais afetados dos trópicos. Chuvas extremas e inéditas destruíram Friburgo e Petrópolis, na zona serrana do Rio de Janeiro. Cidades mineiras são surradas anualmente. São Paulo e Rio de Janeiro já estão se acostumando com as chibatadas.
E agora o caso do litoral paulista entre Santos e os limites com o estado do Rio de Janeiro. Em Bertioga e São Sebastião, o volume de chuva em 12 horas ultrapassou 600 mm. Não há registros de tão alta precipitação no Brasil. Trata-se de um recorde. Caísse no meio do oceano ou no centro do deserto do Saara, tal volume não causaria estragos. Mas em cidades espremidas entre o sopé da montanha e o mar, além de extremamente adensadas, sim. Talvez não causassem tanto estrago se essas cidades não constituíssem uma barreira entre o continente e o mar. Mas as casas primeiramente arrastadas são as dos pobres, com mortes e perdas materiais. São bem-vindos os trabalhos do Cemaden, das defesas civis, das visitas de governantes, da caridade pública, mas não bastam mais. Não se trata nem de encontrar áreas seguras para novas construções. Os governos municipais, estaduais e federal devem repensar as cidades e promover sua adaptação aos novos tempos. É trabalho demorado, mas deve ser iniciado. Esse deveria ser o primeiro tópico da agenda do Ministério das Cidades.