por Arthur Soffiati
Há anos planejo conhecer São Gabriel da Cachoeira, no alto Rio Negro. Motivo: é a única cidade do Brasil com quatro línguas oficiais: português, nheengatu, tucanoe baniwa. Nem Bolsonaro, com seu nacionalismo obsoleto e sua política anticultural, conseguiu tirar da cidade o título de capital indígena do Brasil.
Quando me interessei em conhecer São Gabriel da Cachoeira, só era possível alcançá-la numa viagem fluvial de 26 horas uma vez por semana ou de avião do exército. A cidade conta com o 5º Batalhão de Infantaria de Selva. Estando o munícipio em área de fronteira com Colômbia e Venezuela, em meio à selva ainda densa, com tráfico de drogas e de minerais, a defesa é reforçada.
Hoje, é possível viajar de Manaus a São Gabriel em avião comercial num voo rápido. Foi o que fizemos, em vista do tempo disponível para viagem. O aeroporto foi aberto no meio da mata e não conta com equipamentos modernos para orientar pilotos. Eles têm de contar com os aparelhos de bordo e com a própria experiência. Na chegada e na saída, soldados do exército, com rostos ocultos para não serem identificados e contando com cães farejadores, revistam os passageiros.
O deslocamento do aeroporto para a cidade é sofrível. A estrada é longa e mal pavimentada. Estamos no coração da Amazônia e mais ainda numa bacia hídrica repleta de tradições indígenas e ocidentais. Por ela, passaram vários naturalistas europeus em tempos mais difíceis de acesso.
Não encontramos taxi. Policiais militares ofereceram para nos levar ao coração da cidade. Quem sai do Rio de Janeiro, estranha essa hospitalidade. Todos os policiais na viatura tinham curso superior. Todos foram gentis conosco. Todos conhecem todos numa cidade pequena.
O município de São Gabriel da Cachoeira é o terceiro maior do Brasil, com cerca de 109.181 km². Sua população, contudo, gira em torno de 52 mil habitantes. Seu território é maior que os dos estados de Santa Catarina, Paraíba, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Alagoas e Sergipe separadamente. Ainda separadamente, supera os territórios da Guatemala, Islândia, Coreia do Sul, Jordânia, Hungria e Portugal. No entanto, o município tem apenas quatro distritos. Além de São Gabriel da Cachoeira, distrito-sede, os outros três são Cucuí, Assunção do Içana e São Filipe. A comunicação entre eles é feita por via fluvial ou aérea.
Situado na Cabeça do Cachorro, São Gabriel foi colonizado, em grande parte, por ação dos Salesianos. Sua história oficial seguiu praticamente os estágios dos tempos coloniais. Em 1858, o povoado foi elevado a freguesia. Ganhou o estatuto de vila em 1891, tornando-se cidade em 1938. Hospedados na Pousada Bawary, foi-nos possível conhecer um pouco da cidade. Sua população é predominantemente indígena. Fui abordado por um homem indígena. Ele me disse ser “índio”. Respondi que também eu era “índio”. Ele caiu na gargalhada. Expliquei-lhe que eu era bisneto de mulher kaingang. Perguntei-lhe a que nação pertencia. Respondeu-me que era tukano. Pedi-lhe para falar algo em sua língua. Ele falou. Podia estar me enganando, mas ele saiu de uma casa em que todos falavam uma língua indígena. Oculto, parei para ouvir a conversa.
Acontece aqui o que encontrei em Barrancos e em Miranda do Douro: as línguas nativas são faladas em casa. Publicamente, todos falam português. Além da diversidade cultural, encontrei outras maravilhas em São Gabriel da Cachoeira. O pretume das águas do Rio Negro fascina. A cidade ergue-se à margem de cachoeiras. Daí o seu nome. Subimos o morro da Boa Esperança, coberto de vegetação nativa. Às margens do caminho escorregadio, foram colocadas as 14 estações da Paixão de Cristo. Do seu topo, divisa-se toda a cidade. Estamos no encontro da planície com o planalto. Perto dali, situa-se o Pico da Neblina, ponto culminante do Brasil.
Sendo ponto de fronteira, os portugueses ergueram ali um forte para a proteção de invasão espanhola. Não restaram ruínas dele. De outro morro, contempla-se um pôr do sol indescritível. Diante da igreja-matriz, reflito sobre a cena que presencio: um padre indígena, prepara crianças e adolescentes indígenas para a primeira eucaristia. As mães indígenas fazem o que o padre lhes pede. O catolicismo romano é um intruso aqui, assim como as demais denominações cristãs. Elas foram acompanhadas de muita violência, mas tornaram-se aceitas pelas diversas nações indígenas. Durante a missa, o padre proferiu algumas palavras em língua nativa. Talvez nheengatu. Alguns líderes indígenas adaptaram o catolicismo a suas religiões e se proclamaram profetas.
Assim levam a vida Arapaco, Baniwa, Barasana, Baré, Desana, Hupda, Karapanã, Kubeo, Kuripako, Makuna, Miriti-tapuya, Nadob, Pira-tapuya, Siriano, Tariano, Tukano, Tuyuka, Wanana, Werekena e Yanomami nessa cidade tão rica em cultura quanto pobre materialmente.
