Marina Silva || Ex-Ministra do Meio Ambiente e ex-Senadora
As queimadas e o desmatamento na Amazônia ganharam novamente repercussão internacional. Pode parecer repetição do passado, mas há uma grave diferença: pela primeira vez, as declarações do presidente do Brasil e de seu ministro do Meio Ambiente, combinadas com o desmonte do aparato e dos programas de combate ao desmatamento, encorajam os atos ilícitos que geram seu aumento descontrolado. Em outras gestões, a impropriedade verbal era contida ou contornada pelos ministros da área e os programas oficiais, mesmo com eventuais prejuízos, seguiam vigentes.
Isso posto, e nos afastando (se é possível) por um breve momento da atual emergência ambiental, podemos colocar a questão de modo realista: com quedas significativas nos índices anuais por cerca de 10 anos, o desmatamento absoluto cresceu devagar, mas constantemente, e agora explodiu. A pergunta é: quem tem responsabilidade nesse crescimento e qual a estratégia para revertê-lo? Hoje, com algumas diferenças qualitativas do que tínhamos 20 anos atrás, há uma interação de três principais vetores: a) atividades econômicas ilegais, b) infraestrutura não planejada e c) grilagem de terras.
Para a instalação de infraestrutura não planejada e a grilagem de terras públicas, existem conhecimentos e políticas capazes de reduzir a pressão. Mas a aplicação desses conhecimentos e a efetividade dessas políticas dependem do vetor econômico. A demanda por infraestrutura e a grilagem decorrem da expansão das atividades econômicas tradicionais: terras mais baratas, logística e energia reduzem o custo de produção e comercialização, criando oportunidades atrativas à custa de externalizar os prejuízos e estimular a ilegalidade, com a negligência e até estímulos impróprios dos agentes públicos.
Também por essa razão, a consolidação de práticas sustentáveis – mesmo nas atividades tradicionais como pecuária, agricultura e indústria florestal – enfrenta concorrência desleal das práticas não sustentáveis. Nas novas atividades econômicas, com base na biodiversidade, ainda pesa outro fator de competitividade; a carência de conhecimento, tecnologia e desenvolvimento de produtos. No máximo conseguimos incluir no processo comercial alguns produtos da biodiversidade, a exemplo do açaí, como nova espécie de commodity florestal, mas sem desenvolver um processo industrial e maior agregação de valor dentro do país.
Assim se descaminha a humanidade: a demanda nacional e mundial pelas commodities tradicionais (carne, grãos, madeira e minério) dá ritmo e dinâmica às atividades produtivas legais e ilegais, à movimentação fundiária e à implantação de infraestrutura no quadro de uma economia que não incorpora indicadores de sustentabilidade nem processos de rastreabilidade social e ambiental nas cadeias de produção e comércio.
E , quando o poder público não impede a ilegalidade, temos a devastação com disfarce e justificativa de progresso.
Já temos, hoje, conhecimento acumulado e experiências bem-sucedidas para que as cadeias de valor globais incorporem os elementos de sustentabilidade, sem perda de produção. As externalidades podem ser positivas, verificáveis e reportáveis para posterior valoração e remuneração do serviço gerado. O Brasil pode ganhar dinheiro, por exemplo, com a manutenção do regime de chuvas – que beneficia a agricultura, gera energia e fornece água ao abastecimento urbano. Podemos ter superávit também no amplo mercado da redução de emissões e fixação de CO2.
É correto afirmar que os países consumidores da produção originária da Amazônia, quando não qualificam a relação comercial, são também responsáveis pela pressão para desmatamento da região. Algumas cadeias de valor já iniciaram essa qualificação (florestal e soja), mas não encontram ainda – nas normas e cláusulas de acordos comerciais bilaterais ou multilaterais – formas objetivas de diferenciação e status de prioridade dos produtos originários da Amazônia com rastreabilidade e certificação.
Eis o que deve ser o eixo da estratégia brasileira: colocar essa responsabilidade na mesa e desenhar modelos de qualificação com critérios de sustentabilidade nos acordos e normas comerciais. Dessa forma, o mercado e países importadores sinalizariam de maneira objetiva a prioridade de suas aquisições e os termos de referências para a entrada de nossos produtos.
Para isso, entretanto, todos têm que fazer o dever de casa. Os acordos comerciais não eximem os países vinculados ao Acordo de Paris de cumprirem seus compromissos nacionais e contribuírem para os fundos globais, fundamentais para mitigar efeitos do aquecimento nos países mais vulneráveis.
E, no caso do Brasil, é essencial não apenas que as instituições coloquem a economia dentro da Lei, mas que o presidente da República e seus ministros parem de estimular a ilegalidade e a irresponsabilidade socioambiental.