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O manguezal e a história

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Lúcia Chayb Diretora eco21.eco.br @eco21_oficial @luciachayb luciachayb@gmail.comPor trinta anos foi a jornalista responsável pela revista ECO21 (1990/2020)

 por Arthur Soffiati

A natureza tem história. Sem a presença humana, ela se transforma ao longo do tempo. Com a presença da humanidade, podemos reconhecer dois processos históricos: o da natureza em si e o que decorre das relações das sociedades com a natureza. Os continentes se deslocaram ao longo de milênios. O ser humano não pode ser responsabilizado por esse movimento tectônico porque ainda não existia. Por outro lado, os rios sofreram grande transformação com o uso que deles fizeram as sociedades humanas. O ecossistema manguezal formou-se antes da humanidade, mas, com ela, sofre transformações. Podemos, pois, reconhecer uma história natural dos ecossistemas e uma história social deles. Não apenas o ser humano é sujeito de história. A natureza sempre foi protagonista da história humana, com ou sem o reconhecimento do humano. Ultrapassamos a história da globalização. Vivemos agora a história planetária, como preconiza o historiador indiano Dipesh Chakrabarty.

Mesmo não sendo especialista em ciências da natureza, o historiador pode escrever sobre a história natural do manguezal como introdução à especificidade de sua abordagem. Será um enfoque de segunda mão, recorrendo a especialistas. Pode também conhecer as formas adaptativas das plantas de mangue e o papel ecológico que o manguezal cumpre. Isto não comprometerá a abordagem específica da história, mas a enriquecerá.

No meu caso particular, dedico especial atenção aos locais em que se desenvolvem plantas de mangue, mesmo que se trate de apenas um exemplar. Pode ser na foz de um riacho com vazão mínima, diante de um lançamento de esgoto na praia, numa praia coberta de pedras, no alto de um costão rochoso, em meio de água oleosa. Não vem ao caso, para mim, se a(s) planta(s) apresentam significativa produção primária, ciclagem de nutrientes digna de atenção ou grande capacidade de sequestrar carbono da atmosfera. O que me interessa é o oportunismo das espécies de mangue. Atento também para os sinais de estresse das plantas, desenvolvendo mecanismos de sobrevivência. Geralmente, eles indicam pressão antrópica sobre o ecossistema.

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Raízes anômalas em mangue branco por submersão prolongada

Entrando no campo do historiador, pode-se buscar os relatos deixados sobre o manguezal nas civilizações pré-ocidentais. São poucos e nem sempre claros, pois ainda não se conhecia a palavra mangue e manguezal. Pela descrição, contudo, pode-se deduzir tratar-se desse ecossistema. Um exemplo pode ser dado com o que escreveu Eratóstenes (276-194 a.C.): “…ao longo da costa oeste do mar Vermelho (correspondia então ao golfo Pérsico), no fundo da água crescem árvores como o loureiro e a oliveira. Quando o mar recua, as árvores são vistas em sua totalidade, e quando está alto elas ficam às vezes totalmente cobertas. Isto é particularmente notável porque a costa atrás delas não tem árvores”. Ou como o piloto árabe Ahmad Ibn-Madjid (1432-1500): “São baixios pantanosos, junto a montanhas – conhece-os só o meu Deus, Senhor glorioso.” (CHUMOVSKY, T. A. “Três roteiros desconhecidos de Ahmad Ibn-Mãjid”. Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1960). A descrição nos leva a crer que ele se referia ao manguezal. Trata-se de um árduo campo de pesquisa que tentei penetrar no livro “O manguezal e a humanidade” (Rio de Janeiro: Autografia, 2021), escrevendo mais sobre a humanidade que sobre o manguezal por falta de documentos. 

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Morte de bosque de siribeira por soterramento

Nas áreas do planeta em que se desenvolvem manguezais, os povos com formas de organização paleolítica (coletores, pescadores e caçadores), assim como aqueles com organização neolítica (agricultores e pastores) exploravam o ecossistema. Como saber, se eles não conheciam a escrita? Através da pesquisa arqueológica. Na América tropical, a arqueologia praticada no litoral tem demonstrado a relação desses povos com os manguezais, ainda mais pela grande produtividade que eles apresentam. O manguezal favorece a sedentarização social por oferecer alimentos.

Nos dias atuais, o estudo da cultura popular material e imaterial revela o conhecimento empírico de astronomia. Conhecer as fases da Lua e o movimento das marés é de fundamental importância para o(a) coletor(a) de animais que habitam o manguezal. O conhecimento dos hábitos de moluscos, artrópodes e peixes facilita a vida dos que dependem do manguezal. Os instrumentos concebidos por eles ajudam na captura. Existe uma culinária desenvolvida com os frutos do manguezal, como mostra o livro “Cozinha da maré” (“Mães do Mangue”, 2021). O comércio também é uma arte. Mas, para além da cultura material adaptada ao ecossistema, desenvolve-se também a cultura imaterial, com suas lendas, literatura popular, pintura e escultura.

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Mangue I por Marcelo Peregrino Samico

Os cientistas se interessam pelos manguezais desde o século XVII, quando as bases da ciência ocidental foram lançadas. No primeiro momento, as espécies eram consideradas isoladamente, como podemos constatar em Guilherme Piso e George Marcgrave. Com a formulação da árvore genealógica da vida por Linneu, cada espécie passou a integrar grupos cada vez mais amplos a partir do gênero. Nicolai Joseph Jacquin foi o primeiro a fazer uso da classificação de Linneu na América. A partir do século XVIII, essa nomenclatura se generalizou. Atualmente, as espécies são examinadas no seu contexto ecológico, sem abandonar o sistema lineano.

Desde que se consolidou como disciplina científica, a história vem se dedicando às guerras, aos governantes, às relações sociais, à economia, à política, ao contato entre culturas etc. A natureza estava fora dos seus interesses. Quando muito, era um palco para o drama humano. Agora, uma vertente da história se volta para as relações entre sociedades humanas e natureza. Esta segunda voltou a ser considerada como agente de história, recuperando sua condição de sujeito que a filosofia mecanicista lhe subtraiu. Nessa condição, pode-se já produzir histórias das relações entre sociedades e ecossistemas. O manguezal é um ambiente com o qual humanos interagem. Busquei, no doutorado e em alguns livros, estudar as relações das diversas classes sociais com o ecossistema manguezal (“O manguezal na história e na cultura do Brasil”. Campos dos Goytacazes: Faculdade de Direito de Campos, 2006). Além de me valer de documentos produzidos por humanos, valho-me da fala do próprio manguezal para meus estudos.

Os manguezais foram arrastados para os debates políticos no mundo todo com o processo de globalização. Geralmente, este ecossistema serve de base econômica aos pobres, mas os ricos podem se interessar por ele. Em toda a história do Brasil, esses interesses conflitantes emergiram na sociedade. No período colonial, o manguezal era disputado por ordens religiosas e moradores de cidades, entre pescadores e donos de curtumes. No período imperial, esses conflitos prosseguiram. A baía da Guanabara presenciou pescadores artesanais em luta contra a pesca de grande porte, que usava dinamite como instrumento de pesca (CALDEIRA, Pedro Soares. “O corte de mangue: breves considerações sobre o antigo e atual estado da baía do Rio de Janeiro; consequências da destruição da árvore denominada mangue”. Rio de Janeiro: J. Villeneuve e C., 1884). Na república, proprietários rurais invadiram manguezais até para a criação de gado. Essas discussões ganham os parlamentos e os governos.

Em outros lugares do mundo, os manguezais são cultivados para corte. Os terrenos ocupados por eles ou em suas adjacências são usados para a criação de camarão, como mostra Martha Vannuci (Os manguezais e nós. São Paulo: Edusp, 1999).

Os debates políticos precedem as leis. O mais antigo diploma legal sobre os manguezais do Brasil foi promulgado em 1760 pelo rei de Portugal D. José I, de certa forma beneficiando os donos de curtumes. As leis consuetudinárias (geralmente orais e passadas de geração a geração) funcionam mais que as leis escritas oriundas de governantes e de assembleias. Essas segundas não nascem necessariamente de conhecimentos empíricos. Elas podem expressar interesses poderosos. Assim como são promulgadas, podem ser substituídas por outras. No Código Florestal Brasileiro, de 1965 (Lei 4.771), os manguezais eram protegidos em toda a sua extensão (bosque, lavado e apicum). Ele foi substituído pelo Novo Código Florestal (Lei 12.651/2012), que retirou o apicum da proteção. Ele expressa os interesses da carcinocultura, (criação de camarões em cativeiro em grandes tanques). 

Os empenhos da educação sobre a importância dos manguezais inserem-se no conjunto da chamada educação ambiental. Muitos estudiosos desse ecossistema dedicam-se a palestras, visitas ao ecossistema e cartilhas sobre sua importância, sobretudo mais recentemente, com a descoberta da grande capacidade dos manguezais em absorver gás carbônico, principal causador do efeito-estufa. Esses esforços não têm produzido o avanço esperado na proteção dos manguezais, infelizmente.

O manguezal tem entrado nas artes. Na literatura, o nome mais conhecido é o do poeta João Cabral de Melo Neto, que associou o manguezal à pobreza. No final da vida, conferiu-lhe o devido valor. Na pintura, é mais comum artistas populares, sem formação acadêmica, tomarem o manguezal como tema para seus quadros, mas também existe uma escola de pintores recifenses que usa o manguezal como assunto. Na escultura, poucos nomes se destacam. O escultor mais famoso a representar o manguezal como motivo foi Frans Krajkberg. Na música popular, o conjunto Manguebeat. Suas letras valem-se muito do mangue e do caranguejo, mas ainda como metáfora da pobreza. O manguezal é uma riqueza.

Eis os principais tópicos sobre os quais a história se debruça para examinar as relações entre sociedades humanas e manguezais.  

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Mangue na Lagoa II – Filipe Arruda

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