por Steffanie Schmidt
No palco global das discussões sobre mudanças climáticas, a COP30, o debate sobre a crise climática enfrenta uma ameaça persistente: a desinformação. Por iniciativa do Brasil, pela primeira vez, a integridade da informação é colocada no centro dos debates como instrumento fundamental para as decisões referentes ao clima. “A parte mais perigosa – e de certa forma invisível – da desinformação é a que usa um discurso político estratégico para a construção de sentidos e significados enviesados, o chamado cherry picking”, afirma Letícia Capone, responsável pela direção de pesquisa do Instituto Democracia em Xeque.
Cherry picking é a prática de selecionar apenas as informações que confirmam uma tese, ignorando deliberadamente dados ou evidências contraditórias As discussões sobre o peso e o papel da integridade da informação no contexto climático ganharam corpo em painéis de diversos pavilhões e instâncias nos terceiro e quarto dias da Conferência das Partes, realizada em Belém (PA). O tom, porém, já veio desde a abertura do evento, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e representantes da ONU enfatizaram a necessidade de combater o negacionismo, classificando esta edição do encontro como a “COP da Verdade”.
Para a pesquisadora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cris Cirino, que investigou padrões de narrativas desinformativas sobre as queimadas na Amazônia, o campo do meio ambiente é constantemente atacado com o objetivo final de desmobilizar as políticas públicas voltadas para a questão ambiental.
“O molde da percepção pública é enviesado, desinformativo e contraditório: afinal, como sediar um evento dessa magnitude, quando a gente já tem praticamente parte da Amazônia virando cerrado e cerrado virando deserto? Como falar de políticas globais quando, aqui no Brasil, na Amazônia, os ‘que mandam’ estão discutindo quando vão perfurar poços em águas profundas na região da Foz do Amazonas?”, destaca a pesquisadora.
A defesa da exploração de gás, petróleo e minérios com grandes impactos ambientais tem sido do discurso unificado dos governadores dos estados da Amazônia Legal durante a COP30. A tentativa de conciliar a defesa da exploração dos recursos naturais em massa com desenvolvimento sustentável e a pecuária extensiva, é adotada ‘à moda da casa’, em uma narrativa de que é necessária a garantia deste tipo de atividade econômica para financiar a justiça social dos povos que habitam a região.
“A agenda global ambiental está desconectada da agenda ambiental da Amazônia”, chegou a afirmar o governador do Amazonas, Wilson Lima (União), durante o lançamento da estratégia unificada do Consórcio Interestadual da Amazônia Legal. Argumento prontamente defendido pelos demais pronunciamentos feitos pelos gestores estaduais presentes.
“Essa é uma janela importante para contar a nossa versão, enquanto amazônidas. É preciso ter o direito de explorar recursos de forma sustentável e ter a oportunidade de sustentar as famílias e dar dignidade a quem protege a floresta”, completou o governador.
Letícia Capone explica que a dinâmica da desinformação ganha contornos importantes no Brasil, considerando que 40% dos mais de 5 mil municípios são desertos de notícias, o que acende o alerta para o impacto de longo prazo do cherry picking institucional. “No momento em que se estabelecem políticas de desenvolvimento sem mencionar seus impactos ambientais e sociais, você molda percepções mesmo”, afirma. “Essa manipulação de narrativas pode, inclusive, gerar uma resistência danosa na população local contra a atuação de agentes e institutos ambientais, dificultando a implementação de políticas fundamentais para a região”, completa.
“O que a gente tem visto são as populações que, na maioria, estão em seus territórios, como os povos originários, as pessoas dos campos, das águas e das florestas, tendo uma consciência mais apurada do sentido de sustentabilidade do que no sentido ‘mercantilizado’, como temos visto na prática”, explica Cris Cirino.
A omissão de riscos e a moldagem de percepções
Os governadores apresentaram com orgulho as reduções nos índices de desmatamento e queimadas e de aumento de rebanho e produção agrícola como prova de que é possível produzir respeitando as regras ambientais. Por exemplo, o Acre celebrou 28% de redução no desmatamento e 90% nos incêndios entre janeiro e outubro de 2025.
No entanto, a contradição central é a de que essa agenda de infraestrutura pesada, mineração e rápida abertura produtiva ignora e massacra o direito das populações tradicionais e povos originários que habitam a região. Ao focar apenas no benefício econômico e minimizar o custo real como emissões de carbono ou o risco de acidentes com petróleo, por exemplo, os discursos dos governadores utilizam o cherry picking para moldar a percepção pública e justificar ações que, na prática, arriscam o bioma e o futuro dos povos que o protegem.
O governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, usou a crítica legítima ao não cumprimento da promessa internacional de US$ 100 bilhões anuais em financiamento climático — que ele chamou de “migalhas” — para justificar a liberação de grandes projetos, durante o painel realizado no primeiro dia do evento.
Mendes questionou, por exemplo, o custo de não ter a mina de potássio no Amazonas por 15 anos, afirmando que o atraso prejudica a segurança alimentar do agronegócio, já que o Brasil importa cerca de 90% do minério que utiliza. Defendeu ainda a Ferrogrão, que liga o Norte de MT aos portos de Belém, argumentando: “Quanto custa ficar transportando isso com milhares de caminhões e carretas? Qual é o prejuízo ambiental?”.
“Não são apenas os governadores da Amazônia que usam um discurso enviesado, mas os governantes do mundo. Todos eles reforçam a lógica de que a exploração de minério, de gás e de óleo é sempre sustentável e sempre feita respeitando o meio ambiente”, afirma Cris Cirino. Não por acaso, empresas responsáveis por violações socioambientais não se sentem constrangidas em patrocinar a cobertura jornalística da COP30 na grande mídia. Vale e JBS, por exemplo, foram as que mais aportaram nesta edição do evento. Link
Já o governador do Amapá, Clécio Luís, destacou com orgulho que seu estado possui 97% de cobertura florestal intacta e 73,5% do território protegido, além de ter todas as Terras Indígenas demarcadas. No entanto, ao mesmo tempo que apresenta ‘dados exemplares’, defende a exploração de petróleo e gás na costa do Amapá, sugerindo que o debate sobre essa agenda está “contaminado por ideologias e desinformação”. A opinião do governador mudou após a concessão do Ibama para perfuração de um poço de pesquisa na margem equatorial da foz do rio Amazonas, que chegou a afirmar que a decisão do órgão foi feita dentro de um viés de “maturidade institucional”.
“A descrença em instituições que eram consideradas confiáveis, a despolitização sobre a política, as relações líquidas que temos construído, a desesperança, o medo, o ódio, o preconceito, a discriminação e, o pior: o afeto que mais tem circulado na sociedade – a vontade de excluir o Outro (maiúsculo mesmo) como um inimigo cruel, é o principal impacto da desinformação”, aponta Cris Cirino.
Nesse contexto, o jornalismo que poderia contribuir com a construção de sentido, enfrenta uma competição com o direcionamento de recursos publicitários – em torno de 80% para as redes sociais, conforme pontuou Samantha do Carmo, gerente executiva da Associação de Jornalismo Digital (Ajor), durante o painel “Enfrentar a desinformação sobre o clima: o papel do jornalismo e sua sustentabilidade”, realizado no mesmo estande dos governos estaduais, nesta quinta-feira, 13.11. “Muitas pessoas não veem valor no jornalismo porque não tem diferença na qualidade de vida cotidiana quando acessam notícias muito distantes da realidade delas. Essa conexão e a relação direta com a audiência migrou para a mediação das plataformas de redes sociais”.
Integridade pelo clima
No pavilhão do Governo Federal, a Iniciativa Global para a Integridade da Informação sobre Mudanças Climáticas lançou, no terceiro dia da Conferência das Partes, 12/11, a Declaração sobre a Integridade da Informação sobre Mudanças Climáticas na COP30. A iniciativa estabelece compromissos internacionais compartilhados para combater a desinformação climática e promover informações precisas e baseadas em evidências sobre questões climáticas. Essa é a primeira vez que o tema da integridade da informação foi incluído na Agenda de Ação da COP.
Frederico Assis, enviado especial da COP30 para a Integridade da Informação, ressaltou que o enfrentamento à desinformação sobre a mudança do clima exige uma resposta colaborativa e coordenada em escala global. “Enfrentar todas as formas de desinformação que servem ao discurso de ódio e ao extremismo político é fundamental porque, também, desorienta inclusive o contexto climático”, afirmou durante o lançamento.
O risco que a desinformação representa para o alcance das metas climáticas foi reconhecido pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que afirmou, em 2022, que o “enfraquecimento deliberado da ciência” contribui para a “distorção da percepção do consenso científico, incerteza, negligência quanto aos riscos e à urgência e dissidência”.
O lançamento da Iniciativa Global pela Integridade da Informação e Mudança Climática (que inclui a “Carta pela Integridade da Informação”) ocorreu antes da COP30, durante a Cúpula do G20 em novembro de 2024, e foi articulado pelo Brasil, pela ONU e pela UNESCO.
Um capítulo brasileiro da iniciativa foi lançado em março de 2025, reunindo organizações da sociedade civil, academia e especialistas para coordenar ações no âmbito nacional e para a COP30.
A iniciativa está sendo promovida ativamente, com a partilha de atualizações, recursos e atividades interativas para envolver o público na discussão sobre a integridade da informação climática. O Fundo Global para a Integridade da Informação sobre Mudanças Climáticas da Iniciativa, lançado em junho, recebeu 447 propostas de quase 100 países e conta com um financiamento inicial de US$ 1 milhão do Governo do Brasil. O Fundo já começou a apoiar sua primeira leva de projetos em vários continentes, com quase dois terços das propostas qualificadas originárias do Sul Global.
“Possivelmente, a desinformação, fabricada com os nossos dados, seja o novo ‘metal raro’. Talvez, o maior e mais lucrativo commodity de todos os tempos porque a criação das narrativas desinformativas se forma com apelo emocional, com as nossas crenças e valores e com os nossos ‘dados’, muito impulsionado pelo ambiente digital”, aponta a pesquisadora da UFPA, Cris Cirino. “Sem lei para regulamentar as plataformas, sem crença e esperança no protagonismo do povo, e sem a literacia midiática necessária para pensarmos criticamente, continuaremos, fatalmente, manipulados pelas grandes empresas de tecnologia, afinal, os nossos dados são a matéria-prima para a desinformação”, conclui.
Esta reportagem foi produzida por O Viradouro, por meio da Cobertura Colaborativa Socioambiental da COP30. Leia a reportagem original no Link



