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Teses sobre as relações humanidade-natureza

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Lúcia Chayb Diretora eco21.eco.br @eco21_oficial @luciachayb luciachayb@gmail.comPor trinta anos foi a jornalista responsável pela revista ECO21 (1990/2020)

Por Arthur Soffiati

1- Emergência da humanidade. A humanidade, antes mesmo de ser humana com o Homo sapiens, emergiu da natureza, dependendo intrinsecamente dela. É notória nossa relação com espécies hominídeas e destas com os mamíferos e vertebrados, todos dentro do reino animal, por sua vez integrante da vida como um todo. Essa dependência levou os humanos a considerarem a natureza sagrada. Percebeu-se logo a importância do sol, da lua, do ar, das águas, das plantas e dos animais na vida das sociedades humanas. A complexidade do cérebro fez emergir a consciência do mundo e de si. Essa consciência revelou a solidão e a percepção da morte como separação deste mundo. O desamparo levou à formulação de concepções religiosas. As forças da natureza passaram a ser cultuadas. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro mostra como sociedades de todos os continentes conceberam o multinaturalismo ao crerem que todo ser é humano com roupagem diferente. Mesmo dependendo da caça para viver, as primeiras concepções religiosas respeitam a natureza. Como mostram desenhos gravados em pedra, os astros, os elementos físicos, as plantas e os animais são cultuados.

2- Natureza como sujeito nas sociedades pré e não ocidentais. Participando da vida dos humanos, a natureza não era percebida como separada. Bem ao contrário, o humano se inseria nela. Ele era sujeito consciente sem consciência disso. Assim, ele transformava, sem o saber, a natureza em sujeito. Ela participava do mundo como os humanos, embora fosse recurso para a vida dos humanos. Exatamente por isso, ela era cultuada e respeitada. Limites na exploração de recursos eram reconhecidos, assim como limites na produção de resíduos. Como predominavam recursos naturais, os resíduos eram também naturais e absorvíveis pela natureza.

3- Crises ambientais antes do ocidente. As relações entre humanos e natureza começou a passar dos limites da segunda com a emergência das civilizações a partir de sociedades neolíticas. Mesmo assim, considerava-se a natureza como uma entidade com limites. As civilizações mesopotâmica, egípcia e chinesa dependiam de rios e reconheciam essa dependência. Além do mais, as tecnologias desenvolvidas não permitiam ultrapassar limites. A consciência inconsciente de limites permeava as distintas sociedades complexas. Apenas em algumas pode-se vislumbrar a ultrapassagem desses limites. Na civilização índica, que floresceu no vale do rio Indo entre 2.500 e 1.500 a. C.; na civilização khmeriana, no vale do Mekong, entre os séculos IX e XV; na civilização Maia, na América Central, entre os séculos III e XVI; e na ilha de Páscoa, entre os séculos XII e XVII. Por mais controversa que seja a hipótese de crise ecológica antrópica nessas civilizações, elas não podem ser descartadas de todo. Existem outros exemplos de uso abusivo da natureza pelas sociedades. 

Mapa-múndi concebido por Diego Ribeiro, 1529 

4- Raízes profundas da crise atual. Se as pesquisas ainda não foram conclusivas quanto a crises ambientais antrópicas antes do Ocidente, não há mais dúvidas quanto à crise ambiental da atualidade. Sua gênese pode ser datada no século XI, na Europa Ocidental. O pequeno aquecimento global medieval, entre os séculos X e XIV, contribui para a emergência da economia de mercado, que estimulou a derrubada de florestas e a drenagem de pântanos. Nesse caso, o aquecimento natural do planeta estimulou a conquista de ambientes naturais. Mas a economia emergente foi movida pela conjunção de dois fatores: primeiro, o livro do Gênesis, na passagem em que Deus entregou a natureza, que Ele considerou boa, para ser explorada pelo humano. Esse mito foi incorporado pela economia nascente, que transformava os bens de uso em bens de troca. Assim, formou-se a economia de mercado, o modo de produção capitalista. Antes, o mercado dependia da produção de excedentes. Agora, a produção depende do mercado. E ele se torna cada vez mais exigente, cada vez mais voraz nos séculos seguintes.

Mapa-múndi concebido por Diego Ribeiro, 1529 

5- Desenvolvimento da crise atual. Minha geração aprendeu na escola que os europeus se arriscaram nos oceanos, a partir do século XV, para levar aos outros povos a verdadeira fé e também como demonstração de coragem. A motivação mais profunda para enfrentar tantos perigos foi bem material: a procura por especiarias e por escravos. Quem lê os livros dos navegadores portugueses encontrará pouca fé e muita cobiça. Eles conseguiam especiarias, escravos e marfim nas costas africanas. O diário de bordo de Vasco da Gama mostra um comandante violento e cruel com homens adultos, idosos, mulheres e crianças. Não resta dúvida de que existia o desejo de catequese e de conhecimento, mas ele não foi a motivação principal para a expansão marítima. E a catequese criouem outros povos uma visão de mundo que favorece os cristãos europeus ainda hoje. A conquista de terras em outros continentes que não o europeu levou à destruição dos ecossistemas nativos a partir do século XVI. Basta tomar os casos da ilha da Madeira e do litoral do Brasil, onde as florestas foram derrubadas em grande escala nos séculos XVI, XVII e XVIII. A destruição de matas não apenas empobreceu a biodiversidade florística e faunística como também teve a riqueza do seu ambiente substituída por monoculturas. Muito CO2 foi lançado na atmosfera, assim como o sistema de produção de oxigênio foi drasticamente comprometido.

Destruição do bioma Caatinga

6- Coisificação da natureza. Não faz muito tempo, as análises de intelectuais preocupados com a questão ambiental atribuíam a separação da humanidade em relação à natureza à filosofia mecanicista europeia do século XVII. Descartes era, então, o principal responsável por essa separação, exposta com clareza em seu “Discurso do método”. Seria conferir muito poder a um filósofo num mundo em que o pensamento era restrito a poucos. Latifundiários monocultores e comerciantes ambiciosos não liam. Na verdade, não foi Descartes quem mudou o mundo material, mas o capitalismo comercial criou um ambiente ideal para o pensamento mecanicista, antropocêntrico e triunfalista, no qual o “progresso” é linear, ascendente e contínuo rumo a um mundo esplêndido. Na verdade, o ambiente econômico, político e social é que permitiram o pensamento cartesiano, presente na concepção de progresso que permeia o iluminismo e o marxismo. Esse pensamento reduziu a natureza a um estoque de recursos e a um repositório de resíduos.   

7- Aceleração da crise atual. A economia de mercado com base na agriculta e no comércio permitiu a acumulação de capitais. Sabemos que o capital sempre busca se ampliar. Na verdade, o capital não tem desejos, mas os capitalistas, sim. Dessa forma, a noção de limites físicos e éticos tornou-se elástica. Entendeu-se que a natureza podia sustentar um crescimento constante, assim como pessoas que viviam em comunidades tradicionais poderiam transformar-se em mão-de-obra. O capital acumulado pelas atividades rurais e pelo comércio passou a ser investido em inovações e se deslocou para a indústria no fim do século XVIII. Para mover as máquinas, o vapor era insuficiente. A indústria passou, então, a utilizar o carvão mineral, o gás natural e o petróleo como combustíveis. Como se entendia a natureza como uma entidade com capacidade infinita de absorver dejetos sólidos, líquidos e gasosos, não se especulou a respeito de poluição do ar, da água e do solo. A extração de fontes fósseis de energia e de metais; a exploração da água e do solo, exigindo-se deles uma produção infinita dentro de ambiente finito; o crescimento desordenado das cidades; a imposição da concepção ocidental a sociedades de todo o mundo e a liberação da energia nuclear, além de muitos outros elementos, conduziram à crise ambiental do presente.

Tuvalu, ilha do oceano Pacífico ameaçada pela elevação do nível do mar causado pelas mudanças climáticas

8- A crise ambiental hoje. Em outras palavras, o que se chama de globalização é, na verdade, a expansão material e ideológica do ocidente. Todos os países do mundo, em maior ou menor escala, foram ocidentalizados e passaram a acreditar na ideologia do progresso. Essa ideologia é uma prisão da qual é difícil sair. O caso dos combustíveis fósseis é o mais ilustrativo. A ciência vem acusando mudanças na atmosfera pelo acúmulo de gases oriundos da queima de petróleo, gás natural e de outras emanações. Os países estão cientes, mas a lógica da economia e da política não é a mesma da ciência. Anualmente, a ONU promove conferências com o objetivo de estabelecer metas que assegurem temperaturas adequadas para a vida na Terra. Compromissos são assumidos, mas não cumpridos. Sabe-se que não se pode passar rapidamente de uma economia baseada em carbono para uma assentada em energia renovável. Essa é apenas uma urgência para uma civilização ecologicamente sustentável, mas ela não está avançando no ritmo desejado. Os países continuam investindo em combustíveis fósseis e em propaganda por um mundo “sustentável”. 

9- Características da crise atual. Mas a crise ambiental não se resume a mudanças climáticas, embora ela seja a que mais se evidencia. Não se pode ainda afirmar que enfrentamos uma nova estrutura climática, mas mudanças climáticas afetam o mundo com temperaturas elevadas ou reduzidas, chuvas torrenciais, secas arrasadoras, ventos destruidores. A destruição de biomas e ecossistemas ocorre no mundo todo. A biodiversidade está sendo empobrecida num ritmo muito acentuado. A poluição do ar, da água e do solo está crescendo em ritmo vertiginoso. A água doce está se escasseando nos continentes. Os oceanos estão se aquecendo. A poluição neles é incomensurável e preocupante. As cidades não respeitam limites. O consumo de recursos continua acelerado, gerando escassez e poluição. 

Derretimento de geleiras pelo aquecimento global

10- Singularidade da crise atual. O planeta passou por muitas crises ambientais antes da emergência do Homo sapiens e do capitalismo. Pelo menos, cinco grandes crises naturais promoveram mudanças climáticas e extinção maciça de espécies. Historiadores também levantam a possibilidade de crises ambientais provocadas pela relação de sociedades humanas com a natureza. Registram-se, assim, crises naturais globais e crises antrópicas locais. A crise atual é a primeira antrópica e global. Esta é a sua singularidade. O mundo todo está envolvido nela, embora nem todas as suas partes contribuam na mesma magnitude. As ilhas do oceano Pacífico sofrem a consequência da elevação do nível do mar sem terem dado grande contribuição para as mudanças climáticas.

Lixo nos mares

11- Do local ao planetário passando pelo global. A primeira fase da humanidade foi vivida no plano local. Por mais que a origem do humano esteja na África, de lá partindo para a conquista de todos os continentes, cada grupo humano criou raízes locais e desenvolveu culturas próprias, por mais que tenha trazido alguma herança cultural de antepassados. Essa herança foi reelaborada de acordo com a realidade local. Sabemos que o continente americano foi o último a ser colonizado por humanos. Eles ocuparam todas as latitudes, do Ártico ao Antártico, e desenvolveram culturas adequadas a cada bioma e ecossistema. Depois de um crescimento interno, a civilização ocidental cristã partiu para a expansão marítima e para a conquista de outros continentes, entrando em contato com as mais diversas culturas. Esse encontro foi beligerante na maior parte das vezes. Raramente foi pacífico. Dele, resultaram processos de rejeição, aculturação, extermínio. No geral, esses processos resultaram na globalização do mundo, processo bem estudado por Arnold Toynbee e, na atualidade, por Serge Gruzinski. Agora, com as culturas de todo o mundo em contato umas com as outras e ocidentalizadas até onde possível; agora, que todas elas estão na malha de uma economia capitalista em maior ou menor escala, essa grande humanidade ingressa numa era planetária. Ela tem suas origens nos anos de 1950, com as primeiras explorações do espaço. Atualmente, o espaço extraterrestre também está poluído por lixo espacial. O Sol, a Lua e as estrelas eram adorados por várias culturas no passado. Agora, são estudados pelo que se conhece como ciência. Sabe-se que a vida só existe pela radiação solar. A lua é importante para os ciclos da vida. Sabemos que os biomas se interligam, que a biodiversidade é fundamental para a vida humana, que os oceanos são ambientes reguladores da atmosfera e esta deve estar num patamar adequado para os viventes. Descobre-se até que certos sinais podem indicar a existência de vida em outros astros, como aconteceu recentemente com o planeta K2-18b. Os astrônomos se enchem de alegria por encontrarem longínquos traços de vida. De vida que está sendo destruída na Terra. Para o bem ou para o mal, entramos na Era Planetária, como mostra o historiador indiano Dipesh Chakrabarty.  

Lixo espacial

 

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