Arthur Soffiati |
Nasci em 1947, na casa de saúde São Sebastião, hoje em ruínas, no final da rua Bento Lisboa, no Catete. Meus pais moravam no final do Cosme Velho, naquele edifício conhecido como Ferro de Passar. Ele está lá ainda. Na sua frente, ficava o ponto final do bonde, em forma circular. Fui batizado na Igreja Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado.
Logo depois, meu pai foi transferido para Campinas. Ele era militar e tinha de cumprir ordens. De lá, para Curitiba, onde nasceu meu irmão. Finalmente, para Paranaguá. Em 1956, voltamos ao Rio de Janeiro. Só então fui matriculado numa escola. Era a escola pública Senador Correia, na praça São Salvador, Laranjeiras. Com nove anos, eu me sentia deslocado de meus colegas, que tinham em torno de sete anos.
Voltamos a morar no Cosme Velho. Lembro que, do lado esquerdo do nosso apartamento no segundo andar, o rio Carioca ainda estava descoberto. Já havia poluição, mas não muito acentuada. Suas águas, provenientes do maciço da Tijuca, ainda eram claras. E eu brincava, como eu brincava! Eram outros tempos. Havia criminalidade, mas quase não se ouvia falar nela. Quando ganhava a imprensa era porque a coisa era séria. Com nove anos, meus pais não se preocupavam de eu ir à escola e voltar dela sozinho, no bonde Águas Férreas. Antes, eu passava na casa dos meus avós paternos, na rua Conde de Baependi, para degustar um lauto lanche que minha avó preparava.
No Cosme Velho, eu podia brincar com meninos bem maiores que eu, já adolescentes, sem os perigos de pedofilia e de agressão. Era comum eu brincar no Largo do Boticário e ir à Bica da Rainha. Eu morava perto de onde morou Machado de Assis e não sabia. O que chamava muito minha atenção era o rio Carioca. Ele passava ao lado do prédio e no Largo do Boticário com o leito descoberto. Mais tarde, soube que seu curso seguia em direção à praia do Flamengo, onde desembocava por dois braços, formando um pequeno delta. Perto de vários outros rios que também tinham foz na baía de Guanabara, o Carioca era um pequeno rio. Mas ele abasteceu a cidade do Rio de Janeiro por bom tempo.
Soube também que a rua Conde de Baependi, onde moravam meus avós, só pôde ser trafegada por automóveis quando o rio Carioca foi capeado. Nunca imaginei, quando criança, que o rio da minha vida corria sob meus pés de criança e que minha escola ficava à sua margem esquerda.
Como as concepções de desenvolvimento são catastróficas! Houve um tempo em que rio bom era rio aberto e limpo. Eles, os rios, passaram a funcionar como rede de esgoto e lata de lixo. A concepção mudou pouco até os dias de hoje. Eu diria que se acentuou. Agora, na Europa e em alguns países da Ásia, os pequenos rios estão sendo revitalizados. Governantes e população desenterram os rios e os ressuscitam. No Brasil, continuamos a desrespeitar os rios, como tão bem mostrou Gilberto Freyre em “Nordeste”, intuitivo livro de 1939.
Quanto ao Carioca, a parte que corria a descoberto do lado do prédio em que eu morava no Cosme Velho, foi sepultada. Sempre que posso, vou ao Largo do Boticário, mas com tristeza por ver o estirão do Carioca conspurcado por esgoto e lixo grosso, com os prédios do local em péssimo estado de conservação. Bem recentemente, redescobri o rio no livro “Terra Carioca – fontes e chafarizes”, um dos três resultantes das crônicas e dos lindos bicos de pena de Armando Magalhães Corrêa publicados no jornal Correio da Manhã (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939).
Os desenhos de Magalhães Corrêa me enchem de nostalgia. Sinto muita saudade do Rio de Janeiro da primeira metade do século XX. Não é uma saudade doentia, que me paralise. Acho que a saudade aumenta pelo muito que perdemos e pelo pouco que ganhamos. Magalhães Corrêa era apaixonado pelo Rio de Janeiro e um grande cronista da cidade. O rio Carioca aparece nos seus desenhos em vários pontos. Pude vê-lo nos românticos bicos de pena no Largo o Boticário, perto da Bica da Rainha e na Conde de Baependi. Encontrei uma foto dele na Praça José de Alencar, datada de 1905. Uma foto mais atual mostra a foz do rio na praia do Flamengo. Não conheço seu trecho final. Pela foto, vejo apenas que ele foi bastante adulterado.
Em 2015, deparei-me novamente com ele no romance histórico “A primeira história do mundo”, de Alberto Mussa (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2014). Baseado em pesquisas, o autor mostra que os dois braços do pequeno delta eram cercados por um pequeno manguezal. Tudo a ver. O encontro da água doce com a água salgada formava um estuário intertropical, ambiente adequado para o desenvolvimento das plantas de mangue.
O livro de Magalhães Corrêa alcança os subúrbios do Rio de Janeiro na década de 1930. Seus registros escritos e desenhados são preciosos. Merecem comentário. Não sei se viverei o suficiente para conhecer a nascente do rio Carioca. Certamente, espero visitar sua foz antes de morrer.